A Vida no Centro

Blog da Denize Bacoccina

Denize Bacoccina é jornalista e especialista em Relações Internacionais. Foi repórter e editora de Economia e correspondente em Londres e Washington. Cofundadora do projeto A Vida no Centro, mora no Centro de São Paulo. Aqui é o espaço para discutir a cidade e como vivemos nela.

Na Praça Roosevelt, o embate entre uma cidade aberta e o sequestro dos espaços públicos por uma minoria

Intolerância de uma minoria que tomou conta das representações oficiais ameaça o direito de todos ao uso do espaço público. Poder público se isenta da sua função de debater e conciliar os interesses conflitantes

Publicado em:
Tempo de leitura:5 minutos

No feriado prolongado da semana passada (2 a 5 de novembro) aconteceu mais uma edição do Satyrianas, um festival criado pela companhia de teatro Os Satyros com ampla programação cultural (teatro, música, circo e programação infantil). Até o ano passado, ele ocupava a Praça Roosevelt para uma grande festa, geralmente gratuita ou na base do pague quanto puder.

 Nesta 18ª edição, no entanto, uma surpresa: o festival foi impedido de usar a Roosevelt. O espaço estava totalmente degradado em 2000, quando Os Satyros instalaram na rua o seu teatro e ajudaram a trazer público e as atenções da cidade para o lugar.

A proibição estava escondida em um decreto do início de fevereiro, feito sob medida para acabar com o carnaval na praça, e de quebra proibindo qualquer outro tipo de manifestação, em qualquer horário do dia e da noite.

O estranho é que a Praça Roosevelt, um local que nos anos 1990 era perigoso, escuro, frequentado apenas por traficantes, viciados, prostitutas, michês e seus clientes, tornou-se, nos últimos anos, um dos locais mais vibrantes de São Paulo. E isso graças, justamente, ao perfil artístico que voltou ao local.

Os antigos frequentadores, clientes dos traficantes e dos michês, deram lugar a um público diversificado: moradores com seus cachorros, pais ensinando os filhos a andar de bicicleta, aulas a céu aberto de malabares, bambolê, prática de yoga, tai chi chuan, e, claro, grupos de amigos tomando cerveja e skatistas até tarde da noite.

O local também atraiu um público novo, que veio se somar aos antigos moradores: casais jovens, de todas as colorações de gênero, solteiros e gente de um modo geral interessada na vibração de um local onde, em apenas um quarteirão, se concentram seis teatros e 12 bares. A mais recente aquisição é a volta do Cine Bijou, agora como cineclube, com programação inicialmente aos sábados e planos de se tornar permanente no próximo ano.

Sinal de alerta

A proibição de usar a Praça Roosevelt prejudicou, mas não impediu a realização do Satyrianas, que já encontrou outros locais. Inclusive dois teatros na Luz que também estão buscando transformar a vizinhança pela arte.

Mas é um sinal de alerta e do embate que se vive hoje no centro de São Paulo: a região voltou a se tornar um centro de atração para uma maioria que quer uma cidade aberta, onde várias tribos dividem o espaço e negociam uma convivência harmônica; e uma minoria, que sequestrou as representações, como instituições (Conseg – Conselho de Segurança) e associação de moradores. Eles querem que as praças sejam desfrutadas apenas pelos moradores da vizinhança em frente.

Na prática, um veto à presença de jovens da periferia nas ruas do centro. Uma forma velada de preconceito, como se o dono de um apartamento fosse também dono da rua em frente, ou da vista que se projeta da sua janela.

Um projeto em tramitação – ou engavetado – na Câmara dos Vereadores prevê a transformação da Roosevelt em um parque. A justificativa oficial é que ela seria melhor cuidada, mas o que se esconde é o desejo de cercar o local e impor horários de funcionamento, afastando os visitantes.

Um risco ao livre acesso a um dos poucos locais seguros, iluminados, frequentados por pessoas de todas as classes e em todos os horários, com postos da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal. A implicância com os skatistas é um caso a ser estudado por profissionais da área médica, tal o nível de neurose e intolerância.

Esse embate também está presente nas discussões sobre o destino do Minhocão. Transformado apenas oficialmente em um parque, o Minhocão hoje tem uma dupla função: viaduto para carros durante a semana, até às 21h30, e aos sábados até 15h; e área de lazer à noite e nos fins de semana.

Embora não esteja de acordo com o imaginário da maioria sobre como deve ser um parque – árvores e laguinho com carpas, talvez? -, o espaço é o único onde uma população urbana que vive na região pode tomar sol e fazer uma caminhada sem se preocupar com o risco de atropelamento. Aqui também as atividades de lazer estão ameaçadas pela intolerância de alguns, que se incomodam com a crescente ocupação dos espaços públicos por todos.

Ainda não está claro o que a gestão municipal vai fazer. Afundada por problemas muito maiores, a Prefeitura de São Paulo parece apostar no imobilismo. Não fazer nada para ver como fica. Olhar para o outro lado para ver se o problema vai embora sozinho.

Ao fazer isso, no entanto, o poder público se exime da sua tarefa de mediador de conflitos e de tentar uma solução que, se não é de consenso, seja ao menos equilibrada. Sem essa mediação, corre-se o risco de uma minoria tomar para si os espaços que devem ser de todos. É preciso ficar vigilante para evitar que isso aconteça.

Este post foi originalmente publicado no blog A Vida no Centro no HuffPost Brasil. Clique aqui para ler outros posts.