A Vida no Centro

Franquezas

Edson Franco é jornalista com passagens por Folha de S.Paulo, revistas Galileu, Ele Ela, Guitar Player Brasil, IstoÉ, portal Terra e Canal Rural. Em quase todas essas publicações escreveu sobre música, fazendo críticas e entrevistando gente que vai de Wando a B.B. King. Músico diletante, toca guitarra nas horas vagas e discoteca em baladas de música brasileira dançante. É coautor do livro “Música Popular Brasileira Hoje” (Publifolha) e editor de “Zózimo Diariamente” (editora EP&A). Música é o centro da discussão aqui.

Como o Centro me presenteou e levou embora meu melhor amigo

Uma história real que junta discotheque, rap, coalhada com mel e uma mãe ameaçada por traficantes na frente dos filhos

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Para os meus olhos de suburbano das profundezas do ABC, o Centro deixou de ser um monstro indecifrável quando me deu aquele que foi meu melhor amigo na adolescência e início da idade adulta, logo na minha chegada. Uma década e meia depois, o Centro revelou sua face monstruosa ao afastar, de modo violento e cruel, esse amigo de mim.

Foi em 1979 que a minha história cruzou com a de M (preservo a identidade desse amigo querido porque não sei se ele ainda está vivo). Éramos arquivistas na Folha de S.Paulo. Eu tinha 15 anos, e ele, 16. Estar naquela empresa já fazia parte dos meus planos de virar jornalista. Como era dono de um tino comercial muito mais desenvolvido que o meu, M sonhava ser gerente de hotel bacana e via naquele trabalho apenas um meio de bancar a faculdade.

Descobrimos muitas coisas juntos. Em dia de pagamento, íamos ao Almanara da Basílio da Gama nos deliciar com porções de coalhadas com mel, hábito que mantenho até hoje. Quando saía o 13º, a gente se enchia de coragem e rumava para as boates da Nestor Pestana, onde vimos os primeiros strip-teases de nossas vidas. E morríamos de inveja dos asiáticos, que sorviam litros de Johnnie Walker Black Label, sempre rodeados das moças mais desejadas do lugar.

No começo, nosso gosto musical não batia. Enquanto eu teimava em curtir Led Zeppelin, Deep Purple e Bob Dylan, M havia mergulhado de corpo e alma na febre da discotheque. Eu fantasiava me imaginando o melhor guitarrista do mundo, com um monte de mulheres aos meus pés. O objetivo final dele era o mesmo, mas o atalho que escolheu foi se vestir e portar como John Travolta. Reconheço que a estratégia dele foi muito mais eficaz.

As nossas diferenças musicais jamais impediram que fôssemos melhores amigos. Elas apenas nos afastavam quando chegava a hora de escolher o que fazer e onde ir depois do expediente.

Já naquela época, o Centro era o local mais apropriado para descolar as substâncias necessárias para ficar doidão. E M adorava isso. Foi nas mãos dele que vi um punhado de maconha pela primeira vez. Generoso, ele oferecia, e eu recusava. Mas não reprovava. Minha caretice decorria de um pacto que havia feito com a minha mãe aos 13 anos. “Filho, você pode sair e voltar pra casa a hora que quiser, desde que não experimente essas coisas”, dizia ela. Eu topei na hora, crente de que aquele era um preço muito baixo pela minha alforria.

O tempo foi passando, e as amizades de M foram ganhando sofisticação no quesito ficar doidão. Primeiro foi o Rafa, que apresentou a cocaína ao meu amigo. Nossos salários não nos permitiam esse tipo de luxo, mas M conseguiu abraçar a causa por alguns anos. Só deu um tempo quando Rafa morreu em um acidente de moto. Com a cabeça cheia, ele tentou uma manobra difícil e acabou com a moto estraçalhada e a cabeça compactada sob o pneu de um caminhão.

Os anos felizes

Depois desse episódio, tudo parecia ter voltado ao normal. Já estávamos no fim dos anos 80, época em que resolvemos nos casar. Ele e a namorada foram padrinhos do meu primeiro casamento em 1987. Um ano depois, eu e minha mulher fomos padrinhos do casamento entre ele e aquela namorada, agora convertida em esposa.

Os anos seguintes foram de passeios, jantares e visitas frequentes entre os dois casais. Já na década de 90, eu, minha mulher, o irmão dela e a mulher dele compramos um sítio em Parelheiros. Tinha piscina, sauna, uma casa de três dormitórios e um campinho, que convertemos em quadras de vôlei. Íamos para lá todos os finais de semana e juntávamos vários amigos em comum.

Foi ali que o nosso gosto musical confluiu. Numa ocasião, ele levou uma fita dos Racionais MC’s. Dali por diante, passamos sábados e domingos decorando e cantando as letras de “Homem na Estrada” e “Mano na Porta do Bar”. Foram talvez os anos mais felizes da minha vida. Mas os problemas começaram a aparecer.

Na época, M era gerente da filial do KFC na avenida Paulista, a joia da coroa da rede de fast food americana em São Paulo. Passou a ser muito comum M chegar atrasadíssimo aos nossos encontros. Por vezes, ele alegava a dificuldade em zerar o caixa da lanchonete. Em outras, com as mãos sujas de graxa, ele colocava a culpa no carro.

Quando tudo mudou

Um dia, criei coragem, cheguei para a minha comadre e perguntei se estava tudo bem na relação dela com M. Eles já tinham dois filhos na época, e eu e minha mulher éramos padrinhos da filha do casal. Dois dias depois dessa conversa, minha comadre me liga aos prantos. “O M desandou. Caiu no crack!”, disse ela.

O problema já estava em fase tão avançada que o meu amigo, acusado de desvio de vale-transporte e tíquete-restaurante, havia sido deslocado da filial da Paulista para um quiosque da rede no shopping D. Cancelei todos os compromissos do dia e fui encontrar meu amigo. Até hoje não consigo me esquecer dos olhos arregalados com que ele me recebeu. Contei o que havia ouvido da mulher dele e me coloquei à disposição para ajudá-lo a transpor essa dificuldade.

Ingênuo, pensei que, só com um ombro fofo, podia fazer meu amigo sair daquele atoleiro. Conversamos demoradamente, e eu me comprometi a ir com ele na boca de fumo toda vez que a fissura batesse. Bastava ele me ligar. Essa ligação nunca aconteceu.

A rede de fast food foi muito generosa. Mandou meu amigo embora e pagou todos os direitos, o que foi uma catástrofe. Com a rescisão no bolso, ele desapareceu por dez dias e só voltou pra casa quando já não tinha dinheiro nem roupas.

Numa ação conjunta entre amigos, conseguimos interná-lo numa clínica mantida por um pastor evangélico em Arujá. Trocamos os fins de semana no sítio em Parelheiros por esse recanto em Arujá por seis meses. Conhecemos viciados e traficantes e participamos dos cultos com fervor. Fora os momentos em que o Santos está envolvido em uma disputa de pênaltis, foram as únicas vezes em que eu acreditei numa força superior.

Passado meio ano, meu amigo teve alta e foi recebido com festa. Inteligente, dono de um humor corrosivo e ótimo vendedor de si mesmo, logo M se recolocou no mercado de trabalho. Feliz, recebeu seu primeiro ordenado e saiu com os amigos para beber. Depois da festa, sumiu por três dias e voltou só de cuecas para casa. Foi demitido.

A esta altura, o horror teve início de verdade. Coisas começaram a desaparecer da casa do meu amigo. Presentes de casamento e para os filhos viravam pedras. Os desaparecimentos tornaram-se constantes. Minha comadre se revelou uma das mulheres mais fortes que conheci. Seguia a vida amando aquele homem e disposta a encarar qualquer sacrifício para reaver o seu amor. Mas um episódio mudou tudo.

A ameaça do traficante

Meu amigo acabou adquirindo uma dívida impagável com os fornecedores. Um belo dia, eles abordaram a minha comadre, que estava com as crianças. De arma em punho, instauraram o terror: “Fala para o seu marido que agora é só uma ameaça, mas que na próxima a gente vem aqui resolver tudo”. Pensando no bem dos filhos, ela resolveu se separar.

Essa decisão caiu como uma bomba no colo do meu amigo, que, a partir dali, passava a ter direito a ver os filhos a cada 15 dias. Numa balada, reencontrei a comadre e o filho mais velho, que já devia ter uns 16 anos na época. Ele lembrou: “Minha vó era dona de um apartamento na Helvétia [a metros da cracolândia] e de um outro, no mesmo prédio, que ela alugava para moças. Meu pai sabia o dia do pagamento. Eu estava lá e começou uma briga. Ele queria o dinheiro, e ela se trancou no quarto. Ele pegou um frasco de álcool e tocou fogo na porta. Eu gritei, e os vizinhos estancaram o fogo”.

Nessa época, eu tinha poucas notícias do meu amigo. Mas fiquei sabendo que a mãe e o pai dele morreram. No velório deste último, ele só pode comparecer algemado.

A última notícia que tive de M veio pela imprensa. Um fotógrafo da Folha passou uma noite e uma madrugada inteiras registrando o que acontecia na Cracolândia. Ele flagrou o meu amigo, de terno, comprando e consumindo pedras ali.

Ao ver as imagens, além de um sentimento de frustração por não ter conseguido salvar meu amigo, me veio a saudade de um tempo em que eu deveria ter dado mais atenção à discotheque (hoje tenho todos os discos) e mostrado ao meu amigo que as letras dos Racionais descrevem uma realidade, e não um futuro que queremos pra nós.

 

PS: depois de ter vivido tudo isso, tenho a convicção de que o amor e o carinho são as armas mais eficazes no combate à dependência química do crack.

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