A Vida no Centro

Facundo Guerra
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Facundo Guerra, do Grupo Vegas: “A retomada do centro é a retomada da identidade do paulistano”

Para um dos principais empresários da noite de São Paulo, jovens não estão mais interessados na posse, mas sim no acesso e na convivência, o que tem transformado a relação com os espaços urbanos

Por Clayton Melo
Texto e foto

Sentado em uma das mesas do café do Mirante 9 de Julho, o empresário Facundo Guerra está concentrado. Sócio do Grupo Vegas, companhia que mantém várias casas noturnas na capital, quase todas no centro de São Paulo, ele está com fones de ouvido e trabalha em seu notebook sem se preocupar com o ambiente à sua volta.

Há um bom movimento no mirante, com gente em diferentes mesas ou em pé, conversando despreocupadamente.  Perto do computador, o capacete (ele é colecionador de motos) e uma garrafinha térmica de chá – a mochila fica no chão.

Quando me aproximo, Facundo para o que está fazendo e começamos a conversar. Pergunto se é comum ele usar o Mirante 9 de Julho – um local abandonado na região central que ele transformou em espaço multicultural com música, artes, café, bar e restaurante – como um escritório móvel. “Trabalho de qualquer lugar. Não moro muito longe daqui, mas estou sempre indo de um lugar para o outro”, diz , referindo-se a suas outras empresas ou a reuniões. “É só conectar o computador e pronto”.

Nova identidade paulistana

Essa atmosfera aconchegante do Mirante 9 de Julho, que serve tanto para trabalhar, tomar um café, um drinque ou apenas passar o tempo com os amigos, revela um pouco de como Facundo Guerra vê a relação das pessoas com o espaço urbano e, de modo particular, com o centro de São Paulo.

Para ele, depois de décadas de valorização de coisas como carro, luxo e vida em condomínios fechados, os paulistanos buscam uma nova identidade, o que leva a uma relação diferente com a cidade e que se conecta com o centro de São Paulo.

“Formaram-se gerações de paulistanos que tinham uma identidade de bairro, não de cidade. Acho que agora, especialmente a partir da década de 2010, está havendo a emergência de uma identidade de paulistano, que vaza do próprio bairro e se liga pelo centro”, diz Facundo nesta entrevista exclusiva ao projeto A Vida no Centro. “Então, para mim, a retomada do centro é a retomada de uma identidade do paulistano, algo que passa pelo centro, pela Paulista aberta, pelo Parque Minhocão, Parque Augusta e Largo da Batata”.

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O território de Facundo Guerra

Argentino nascido em Córdoba, Facundo mora em São Paulo desde a infância. “O centro é meu território”. Isso explica, como se pode ler na entrevista a seguir, porque seus empreendimentos estão todos no centro de São Paulo. Além do Mirante 9 de Julho, ele é sócio do Riviera Bar, Lions, Yatch, Z Carniceria e Cine Joia.

Em breve a lista vai incluir também o Arcos, bar que ficará no subsolo do Theatro Municipal.  Em novembro do ano passado ele vendeu parte do Grupo Vegas para José Victor Oliva, sócio da Holding Clube e responsável por casas noturnas badaladas nos anos 1980 e 1990 em São Paulo, como o Gallery e o Resumo da Ópera.

Na entrevista, Facundo – que estudou engenharia de alimentos no Instituto Mauá de Tecnologia e fez mestrado e doutorado em ciências políticas –  fala também sobre o Bar Arcos, que ficará no Theatro Municipal. E, com a língua afiada, critica quem afirma haver um processo de gentrificação na região central e solta o verbo contra quem vai “ao centro como se estivesse entrando num Simba Safari só para se sentir cool e depois voltar para segurança do condomínio fechado.”

Confira a entrevista:

A Vida no Centro – O Grupo Vegas ganhou a concorrência para exploração do bar no Salão dos Arcos, no Theatro Municipal. Qual é a proposta para o espaço e quando ele será inaugurado?

Facundo Guerra – O Arcos vai ser aberto em outubro. A ideia é criar um bar que seja um dos 50 melhores do mundo. Temos essa pretensão, essa vontade, e vamos embutir nele uma programação de música erudita. Vai ser o primeiro bar do mundo a ter uma programação erudita ao vivo, tirando a visão de que esse tipo de música precisa estar só no Theatro Municipal ou na Sala São Paulo. Queremos desmistificar a ideia de que bar com som ao vivo deve ter jazz ou blues, por exemplo. Por que não pode haver um quarteto de cordas? Vamos colocar o erudito dialogando com o contexto contemporâneo da música. De repente podemos usar música eletrônica atonal, mecânica e juntar a erudita com a contemporânea. Ainda estamos estudando essa programação.

Seus empreendimentos estão no centro, alguns deles em locais que antes estavam abandonados ou degradados, como o Mirante 9 de Julho. Por quê?

Algo que prezo muito é fazer as coisas com verdade. Uma verdade própria, não absoluta. Algo que, se por acaso eu não me der bem economicamente, pelo menos tenha uma satisfação enorme. Vaidade ou não, ter orgulho do que você faz é uma recompensa. Até diminui a necessidade de fazer dinheiro. Às vezes você faz uma coisa que na qual acredita muito, movido por um propósito, não ganha muito dinheiro com aquilo e beleza. Arruma dinheiro em outro lugar. E eu sou territorialista. Nasci na Argentina, mas vim para o Brasil muito cedo. Morei na Santa Cecília minha vida inteira, na Barra Funda… Eu não conheço a Vila Madalena, Pinheiros ou Morumbi. Como todo bom paulistano de bairro, sou muito ensimesmado. O centro é meu território. Se eu tivesse crescido na Mooca, provavelmente lá seria meu território.

Com toda essa vivência na região, como você analisa as mudanças no centro ao longo dos anos?

São dois centros. Há o tal do centro criativo, um território simbólico que é encampado pelas marcas, e outro, que é o centro de verdade. E os dois não dialogam. Um é o centro simbólico e o outro é o material. O material é sujo, degradado, é o centro do dependente químico, do trombadinha, é perigoso. Muitas vezes é um território hostil. E o centro simbólico é esse do hype, da criatividade. É uma grande balela. Eu gosto do centro sujo, de verdade. Visitar o centro como se estivesse entrando num Simba Safari só para se sentir cool e voltar para segurança do condomínio fechado é uma grande besteira. Ou quando se vai à Sala São Paulo de carro blindado, assiste ao concerto e depois volta para o Morumbi.

É possível aproximar esses dois centros?

Não adianta a gente querer. O centro simbólico é positivo por um lado, porque a diferença entre o centro simbólico e o material vai começar a se fechar. As coisas acontecem primeiro na cabeça da gente. O simbólico representa uma materialização prévia. Se tem muito mais gente sonhando com esse centro de criatividade, logo mais negócios vão surgir nesse campo. Então é um círculo virtuoso, um acaba reforçando o outro. Essa distância entre o centro simbólico e o material, que é grande hoje, vai acabar se fechando com o passar dos anos, mas não é uma questão de  vontade. Isso não importa, é uma dimensão psíquica que precisa se constituir para que depois, daqui a dez anos, 20 ou mais anos, ela se materialize. Estou no centro há 15 anos (como empreendedor). Não é muito diferente daquela época, e ao mesmo tempo é.

É diferente em que sentido?

Os negócios que existiam antigamente eram mais clássicos, mais voltados para um público que frequentava o centro durante o dia. Atualmente, cafés e restaurantes são voltados para os jovens, que também estão vindo para o centro à noite. Isso muda muito para a classe média. Mas para quem trabalha nesse centro à noite ou é da periferia e vem para cá trabalhar durante o dia não muda porra nenhuma. Então é uma ocupação simbólica pela colonização por parte da classe média de um centro que sempre foi periférico. Se formos ao Viaduto do Chá agora, só vamos ver pobre, não vai ver playboy, tem pouco branco. De todas as regiões mais centrais da cidade, o centro sempre foi a mais periférica. É possível observar isso até mesmo pelo perfil dos negócios. Nas imediações mesmo do Theatro Municipal, as moradias são de classe média baixa. De uma determinada forma, existe uma expulsão dessa periferia do centro.

Muitos dizem que há um processo de gentrificação.  Você concorda?

Não gosto da palavra gentrificação. O que chamam de gentrificação é efeito do capitalismo.  Não dá para falar nisso sem antes questionar o capital. Redimensionamento simbólico cria impressão de valor, que leva a busca de oportunidade pelo capital, é comprar na baixa para vender na alta. Se você está preocupado com as pessoas sendo expulsas do centro, então temos de parar de fazer coisas legais na região e deixá-la como está, porque é uma questão de mercado. Não dá para falar de gentrificação sem antes questionar o mercado ou a própria desigualdade de renda. Então, para mim, gentrificação é uma besteira, é efeito. Os urbanistas e arquitetos adoram falar “ah, porque estão gentrificando o centro, fora Yankees”, quando eles mesmos foram os primeiros gentrificadores, os bandeirantes dessa gentrificação.  Foram os arquitetos que começaram a comprar os primeiros imóveis no Copan, os arquitetos de médio nível de carreira. Aí criam um ecossistema, que levou outros negócios e então começou a roda vida. Não tem o menor sentido ficar falando de gentrificação no centro. É efeito do mercado, a cidade é viva. Não posso falar: “Aqui vai acontecer isso, ali vai acontecer aquilo”. São forças de combate que se chocam o tempo inteiro. O capital se choca por um lado, o empreendedorismo por outro, às vezes o empreendedorismo é a ponta de lança do grande capital, às vezes ele é expulso pelo grande capital. Às vezes a cultura vaza e encontra outros territórios, como Bom Retiro ou a própria Santa Cecília, por exemplo.

Pensando na situação do centro hoje, como você analisa essa correlação de forças?

É um campo de batalha.

Alguma delas está dominando?

O capital sempre vai vencer.

Mas ele pode ser influenciado pela cultura, que parece ser um componente importante no atual contexto?

Cultura pra quem? Bom, abriu um Sesc agora, na 24 de maio, tem o centro cultural Porto Seguro. Existem essas forças de combate. Não dá para discutir no calor da batalha quem está ganhando ou vai ganhar. Talvez a cidade ganhe, mas que centro é esse? Por que falamos tanto de centro e não falamos de periferia?

A partir das décadas de 1950 e 1960 aproximadamente, a cidade começou a crescer para áreas distantes do centro, criando assim muitos bairros periféricos. Paralelamente, o centro foi perdendo o protagonismo econômico para locais como avenida Paulista, Brigadeiro Faria Lima e Berrini. Qual o impacto desse processo no conjunto da cidade?

A partir dos anos 1970 aproximadamente, com os militares e depois Maluf, São Paulo perdeu a predominância que tinha nas décadas de 1920, 1930 e 1940, a condição de motor cultural do Brasil – uma coisa que vinha desde os modernistas, da grande metrópole brasileira. A cidade começou a virar o lugar da industrialização, do capital financeiro. E o capital é viral, fala de lucro e foda-se o resto. É a história de “São Paulo não para, não para”, “cidade 24 horas”, cidade do carro, do trânsito. Isso demoliu uma identidade. Virou uma grande Serra Pelada. Todas as populações que ocupam as periferias vieram do Norte e do Nordeste para construir essa cidade que se expandiu como uma metástase, sem qualquer tipo de preocupação com o futuro, rasgando viadutos. O Mirante 9 de Julho é um ótimo exemplo disso. Foram demolindo tudo para construir um viaduto que não serve pra porra nenhuma.

A cidade também está cheia de rios que foram encobertos para permitir o avanço da industrialização e dos carros.

Foram fechando a cidade e privilegiaram o carro em detrimento do transporte público. O período entre os anos 1960, talvez, e 1990 foram de décadas perdidas do ponto de vista da identidade. As pessoas se fecharam nos seus bairros. Formaram-se gerações de paulistanos que tinham identidade de bairro, mas não de cidade. Acho que agora, especialmente a partir da década de 2010, está havendo a emergência de uma identidade de paulistano, que vaza do próprio bairro e se liga pelo centro. Então para mim a retomada do centro é, antes de mais nada, uma retomada da identidade do paulistano, algo que passa pelo centro, pela Paulista aberta, pelo Parque Minhocão, Parque Augusta e Largo da Batata. São campos territoriais que estão sendo apropriados por uma população que precisa de uma nova identidade. Porque aquela identidade da produção, do carro, da matéria, do luxo, do condomínio fechado e da propriedade não corresponde mais ao espírito do tempo. É uma identidade que falava com um paulistano de 40 anos para cima, mas não com os de 20, que começaram a recusar essa identidade baseada na narrativa da classe média, do carro e da casa própria, da viagem para a Disney e para a Europa, da narrativa dos bandeirantes. Começamos com o mito fundador do bandeirante e depois do café, que está na esteira disso. Aquela pujança cria cultura, coloca São Paulo no mapa do modernismo, com a Semana de 22, a nossa grande contribuição que depois esquecemos. Mais tarde vem a década de 1950 e 1960, de resistência, com o teatro, o cinema. São Paulo tem um papel importante nesse momento. Quando vêm a ditadura tudo isso acaba. São Paulo foi arrasada pelos militares e também no pós-militarismo, com Maluf etc. Nessa época, o centro começa a desaparecer, porque dinamita-se a ideia de cidade em função do capital. O capital solapa toda essa coisa identidade da cultura, de uma cidade que é para todos.

Esse novo comportamento agora, de repensar a relação com os espaços da cidade, é algo provocado pelos jovens?  

Sim. Eles negam essa identidade da produção, a visão de que é preciso trabalhar para ter uma carreira, carro e casa própria. É algo que está ligado à ideia da imaterialidade dos tempos, da liquidez das coisas. Não estão mais interessados em ter, e sim em usufruir de experiências, ter acesso, comungar. Um espaço como o Mirante 9 de Julho está muito ligado a isso. Aqui você vem, convive com um dependente químico que eventualmente vai usar o banheiro. A pessoa pode vir tomar um café, mas, se não quiser consumir nada, tudo bem. Eu mesmo trago o meu chá (mostra uma garrafa térmica) ou o meu café, que eu faço e trago. Sou sócio do espaço e também não sou obrigado a consumir. A pessoa pode ficar 10 horas e ninguém vai tirá-la daqui. É um lugar de convivência. É sair das bolhas e começar a viver em comunidade, uma cidade mais possível.

Há mais jovens de outros bairros frequentando o centro atualmente, não?

Porque a quantidade de ofertas culturais no centro hoje é gigantesca.

Você mesmo foi responsável, junto com outras pessoas, por muitos empreendimentos mais recentes no centro, como Cine Joia e o próprio Mirante…

Por alguns, sim. Mas, fora os que eu fiz, também há outros. É óbvio que primeiro vêm os empreendedores, depois o grande capital. É sempre assim. Considero centro a banda de cá da Paulista (do Mirante para baixo) até o Pateo do Colégio, é o campo territorial simbólico. A banda de lá da Paulista são os Jardins e Pinheiros. E repare: do último ano para cá, surgiram no centro o Teatro Porto Seguro, o Instituto Moreira Salles, Japan House, Altino Arantes (Santander), o Sesc 24 de Maio…

E em breve será inaugurado um centro de empreendedorismo com foco em economia criativa no Palácio Campos Elíseos, que será administrado pelo Sebrae.  

Exato. Então são seis centros culturais em um ano. Em um ano! É uma loucura!

O que explica essa efervescência toda?

O redimensionamento simbólico do centro. Primeiro os empreendedores começam a trazer outro fluxo, que é incorporado pelas marcas no campo da projeção simbólica. Você passa a notar que as propagandas começam a ter o centro como cenário, as marcas de cerveja falando do centro. Os empreendedores são a ponta de lança. Atrás deles vêm, primeiro, as corporações de alimentos e bebidas, depois os carros e os bancos. É exatamente esse o caminho.

Que efeito esse movimento todo pode provocar na cidade e no próprio centro?
Não sou futurologista, mas acho que isso vai se acelerar. Vejo com grande preocupação a possibilidade de haver um excesso, uma ultraconcentração de oferta cultural no centro enquanto a periferia fica relegada. A gente fala muito em “vem pro centro”, mas não falamos “vai pra periferia”, apesar de existirem movimentos agora que começam a falar de periferia.

Depois de tantos anos empreendendo no centro e vários projetos bem-sucedidos, como você avalia sua caminhada até aqui? Faria alguma coisa diferente?

Tudo valeu a pena. Não sou guiado por grana, mas fiz minha caminhada. Faço o que gosto.

Clayton Melo

Clayton Melo

Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero com MBA em Marketing pela FGV, é curador cultural, analista de tendências, com formação na Escola Panamericana de Artes, e palestrante – já falou em instituições como Facebook, Google Campus, Mackenzie, ESPM, Cásper Líbero, Anhembi Morumbi, Campus Party e Festival Path. É especialista no desenvolvimento de projetos digitais de conteúdo, com estratégias de construção de audiências e comunidades, e experiência em Storytelling (ESPM), Inbound Marketing, Growth Hacking e Planejamento de Conteúdo para SEO. Neste espaço, escreve sobre tendências urbanas, futuro das cidades, inovação e cultura.