A Vida no Centro

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Há 100 anos, gripe espanhola matou 1% dos paulistanos. Leia entrevista com José Roberto Walker

No livro Neve na Manhã de São Paulo, o escritor e historiador José Roberto Walker fala da epidemia de gripe espanhola, que atingiu São Paulo em 1918

Denize Bacoccina e Clayton Melo | Há pouco mais de século, em 1918, São Paulo foi acometida por uma grande pandemia, a gripe espanhola, que matou 1% de seus habitantes e só foi embora depois de contaminar 40% da população. Em números: numa época em que a cidade tinha 550 mil habitantes e era concentrada no que hoje se chama de Centro Histórico, a gripe espanhola atingiu 200 mil moradores da cidade e deixou um saldo de 5,3 mil mortos.

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O historiador, publicitário, produtor cultural e escritor José Roberto Walker escreveu um romance histórico sobre este período, Neve na Manhã de São Paulo, que se passa entre 1917 e 1918 e conta a história do romance entre Oswald de Andrade e Daisy (história real) e o grupo que frequentava uma garçonnière na Rua Líbero Badaró (num prédio que ainda está lá, no primeiro quarteirão após a Avenida São João). Apesar de ser um romance, com alguns personagens fictícios, ele é baseado em ampla pesquisa histórica e retrata com exatidão a vida de São Paulo naquela época.

OUÇA ABAIXO A ENTREVISTA COMPLETA COM O HISTORIADOR JOSÉ ROBERTO WALKER

A garçonnière da Rua Libero Badaró

O livro mostra uma São Paulo que crescia rapidamente, já havia enriquecido com a exportação do café e se industrializava, tinha recebido um grande número de imigrantes e se abria para o mundo.

O grupo da garçonnière era formado por aspirantes a escritores. Nos encontros na garçonnière, eles conversavam sobre literatura, mostravam e compartilhavam seus escritos e compartilhavam os sonhos de se tornarem escritores consagrados. Foi este grupo que, anos mais tarde, em 1922, criou a Semana de Arte Moderna no Theatro Municipal.

Nesta entrevista ao A Vida no Centro, Walker conta como era a São Paulo daquele começo de século, como a gripe espanhola chegou e como ela afetou a vida na cidade.

Leia os principais trechos da entrevista.

A Vida no Centro – Vamos começar traçando o cenário. A epidemia de gripe espanhola em São Paulo aconteceu no fim de 1918, quando a Europa estava em guerra, já no finalzinho, e São Paulo vivia uma expansão incrível, era uma das cidades que mais cresciam no mundo, recebendo muitos imigrantes. Pode contar mais sobre a São Paulo daquela época?

José Roberto Walker – São Paulo tinha 64 mil habitantes em 1890. Quando começou o surto de expansão da cidade, começou a crescer explosivamente. Em 1917 já tinha passado de 550 mil habitantes. E estes números resumem o que foi a historia de São Paulo neste período. Uma cidade que crescia de maneira espantosa. Ela chegou a crescer 14% ao ano. Esta é a marca da vida da cidade naquela época. Uma industrialização muito acelerada. Os operários, praticamente todos imigrantes, não existiam em 1890. Em 1917, também está narrado no livro, houve a maior greve da história do Brasil. Não havia transporte, não havia pão, leite. A cidade parou completamente. E pela greve dos operários, que 20 anos antes nem sequer estavam ali.

Era a cidade que mais crescia no mundo, não?

Sim, este era ao slogan da cidade, estava escrito nos bondes. E durou até os anos 1960 este slogan no transporte público.

E aí, por meio de um navio que veio da Europa e Estados Unidos, a gripe chegou ao Brasil, por meio do Nordeste, Rio de Janeiro, Santos e São Paulo. Qual foi o impacto da doença na cidade?

É como a epidemia que estamos vivendo hoje. Todas as epidemias têm mais ou menos o mesmo histórico. Elas chegam mais ou menos de surpresa. Existia uma ideia de que não ia chegar aqui. Ela começou a ser notícia em agosto de 1918. Em setembro, já está bem presente, mas não no Brasil ainda. No começo de outubro ela atinge o Brasil pelos portos. Recife, Salvador, Rio de Janeiro, onde ela explode muito rapidamente, uma quantidade enorme de mortos. Em São Paulo ela demora um pouco mais pra chegar. A primeira notícia é de 15 de outubro. As pessoas acham que é uma coisa leve, não oferece muito perigo. Quando as pessoas começam a morrer, havia um discurso oficial que a gripe pegava só as pessoas que já estavam doentes. Esse era o discurso do Correio Paulistano no começo, que era o jornal oficial.

Você notou nas pesquisas uma tentativa do governo de abafar ou censurar ou era uma percepção das pessoas?

Não, eu li muito sobre isso. Não acho que tinha uma tentativa de censurar. A gente tem a tendência de achar que o passado é mais incompleto do que o presente. A imprensa era muito livre, muito viva, tudo se publicava no jornal. Nem tinha como tentar controlar. Havia 8, 10 jornais grandes na cidade. Tinha jornal que saía de manhã, no fim da tarde, à noite. Essa visão que a gente tem de rede social, também havia na imprensa daquela época. Em São Paulo se publicava tudo: o cara foi viajar, chegou de viagem, compareceu a um almoço aqui.

Então havia um otimismo na sociedade?

Não era nem um otimismo, era uma coisa atávica. Eu li vários livros sobre epidemias. A reação é sempre esta. Que é um pouco o que a gente tem aqui também. Um pouco negacionista. Ninguém adere à peste, sempre se procurar negar. Isso aconteceu aqui também. Mas depois ela se instalou.

Em novembro o Serviço Sanitário da época pediu para as pessoas não saírem de casa, havia uma série de tentativas de remédios. Como foi este movimento?

No final de outubro, a gripe já tinha dominado São Paulo. Entre 14, 15 de outubro, a gripe se instalou e as pessoas já foram espontaneamente se trancando. O governo decretou feriado em Santos e São Paulo por nove dias e quando passou o Finados o comércio não abriu mais. Os números de mortos eram altíssimos, passavam de 100. No pico, dia 14 de novembro, morreram 287, que era um número altíssimo para a época. São Paulo tinha 550 mil habitantes. Aí a gripe dominou a cidade. As pessoas se trancavam em casa e esperavam não ser atingidas. E isso durou duas semanas. Por volta do dia 15 de novembro, os números foram diminuindo, diminuindo rapidamente e a epidemia passou. O Oswald de Andrade fala isso: assim como veio, a gripe foi.

Gripe espanhola x coronavírus

E como você compara a reação das pessoas com a reação de hoje?

Lendo os livros do século 18 sobre a peste, o Albert Camus, do século 20, e outros que se escreveu sobre epidemias, a reação é mais ou menos a mesma. Tem uma reação, as pessoas acham que não vai atingir, aí a doença se instala, as pessoas se escondem. Varia de grupo para grupo, mas é meio parecido. No caso agora, como a gente tem muita informação, a gente vai acompanhando o que aconteceu nos outros lugares. Isso também aconteceu com a gripe em São Paulo. Como ela foi mais forte no Rio de Janeiro, as pessoas ficavam vendo as notícias do Rio, onde aconteceu antes, com pavor de que pudesse acontecer aqui também. No Rio morreram 15 mil pessoas. Em São Paulo morreram 5,3 mil. Mas já é 1% da população.

O Monteiro Lobato narra com muita graça, com muita inteligência. Ele faz o resumo da gripe para um amigo com quem ele trocava correspondência. Ele fala: na minha casa todo mundo caiu de gripe, menos a minha mulher. Então é um pouco isso: a gripe acerta um e não acerta outro. É um pouco o que está acontecendo. Mas não há comparação. A gripe espanhola era muito mortal e embora seja uma desgraça do ponto de vista social e econômica, ela é infinitamente menos letal. Não há comparação.

E na São Paulo daquele tempo, que era uma cidade menor e mais concentrada no Centro, o impacto foi muito grande, não é? Até o Lobato ficou na redação do jornal O Estado de S. Paulo escrevendo. Como ficou o clima na cidade?

O que começou a chocar as pessoas é que os jornais foram encolhendo, alguns pararam de ser publicados. Por exemplo, a revista A Cigarra, que era a maior revista de São Paulo, com tiragem de 45 mil exemplares, ela parou de ser publicada. Alguns jornais pararam de sair. O Monteiro Lobato foi para a redação do O Estado de S. Paulo. E isso ia dando para as pessoas a ideia de crise mesmo.  Porque a gripe atingiu 40% da população da cidade. Foi uma coisa muito ampla, muito impactante. Até quando a guerra acabou, foi notícia com menos destaque. Porque as pessoas não tinham cabeça para nada. Mais ou menos como agora. Muitos jornalistas morreram. Também morreram vários médicos. Não havia domínio dos meios do contágio, nem remédio.

Como ficou a produção? Parou tudo ou a indústria continuou?

O comércio, que ficava todo localizado nas ruas do Triângulo, fechou. A diferença, em relação ao que estamos vendo hoje, é que as consequências foram de curto prazo. Quando terminou, voltou tudo. O que não é esperado hoje, que as consequências são de longo prazo. Houve um abalo da economia, mas assim que a epidemia acabou tudo voltou ao normal.

E com muito entusiasmo, não é?

Sim. Tem até um artigo do Estado de S. Paulo, que é sempre muito austero, que diz que o carnaval de 1919 foi o mais entusiasmado, o mais brilhante que já tinha tido em São Paulo até aquele momento. Era a festa de quem sobreviveu, de quem ultrapassou aquilo tudo. Isso acontece imediatamente depois. Quando a cidade abre, ela abre de uma maneira festiva. Os cafés ficam lotados, os cinemas ficam lotados. É uma fúria para afastar esta imagem deprimente da morte, da epidemia. É uma reação muito humana. Celebrar a vida. Isso no caso de São Paulo aconteceu muito e certamente vai acontecer de novo quando a gente se livra desta praga aí.

Mas as reações em relação à epidemia se parecem, porque é uma reação humana, desde tempos longínquos da história.

O que parece um pouco diferente é a solidariedade das pessoas e especialmente das empresas, que parece que se engajaram muito naquela época. Parece que houve um esforço para produzir equipamento, como um esforço de guerra.

A diferença é que naquela época faltou hospital. Hoje não deve faltar hospital. Em 1918 faltou, porque as pessoas não tinham a prática do hospital. As pessoas ricas eram tratadas em casa, os filhos nasciam em casa. O padrão de hospital era a Santa Casa, que socorria quem não tinha recursos. Então não havia ainda uma estrutura de hospitais na cidade. Foram montados muitos hospitais de campanha. Os escoteiros colocaram tropa de entregar remédio nas farmácias. Houve uma onda de solidariedade que é muito interessante. Não havia hospital em quantidade. Vivíamos um mundo pré-hospitalar.

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