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Quando o chão vira texto

A historiadora e antropóloga Paula Janovitch fala sobre a “gramática dos caminhantes”, que pode ser percebida ao se andar a pé pela cidade.

Paula Janovitch

Escrever e caminhar carregam entre si gramáticas bastante semelhantes. Mais do que isso, caminhar ajuda a construir textos. Parece que as palavras brotam mais rápido quando o corpo se movimenta.

Quantas vezes, ao sair caminhando pelas ruas, textos inteiros se desenham em silêncio. É como se o cérebro recebesse mais oxigênio em pé e as palavras tomassem o sistema circulatório. Por esses malabarismos todos da palavra que se faz em movimento, chego à conclusão que andar tem um texto próprio. Existe de fato uma gramática dos caminhantes. Só quem escreve andando sabe bem como isso acontece.

O texto do caminhante não tem começo, nem meio e muito menos um fim. Ele se altera ao acaso e sofre os efeitos dos lugares.

Há calçadas e pisos que sabem dessa gramática dos caminhantes e se metem a interagir com seus pés.

Muitos artistas gráficos que vieram da Europa por conta da Segunda Guerra Mundial deixaram nos pisos de várias passagens de São Paulo este caminhar por tipos que fugiram do papel e foram para as ruas conversar com os corpos em movimento.

Andar pelo térreo do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, por exemplo, causa efeitos incríveis aos pés do caminhante.

Já o edifício do Instituto Moreira Sales, na Paulista, ao construir seu térreo no quinto andar, foi bem ousado com esta retórica gráfica das pedras portuguesas que habitavam as calçadas da avenida. Fez uma homenagem à antiga calçada elevando-a ao seu pavimento principal.

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Nas galerias comerciais do centro, os pisos também denunciam esta animação gráfica. Experimente entrar na Galeria do Rock, ou na sua irmã mais velha, a Sete de Abril. Suba as escadas rolantes e veja com seus próprios olhos o texto que vai se compondo ali de um andar para o outro. Todos diferentes, mas todos interagindo entre si. Bom para andar e melhor ainda para ler com os olhos.

Pode ter gente que diz que estes pisos das passagens, repletos de composições gráficas, são oportunistas, feitos de propósito para enganar nossos pés, atrair os passantes para dentro da vida comercial das galerias. Porém, se nasceram para seduzir, hoje são o que resta de uma composição bem armada entre pés e pisos.

Talvez nestes pisos que se fazem calçadas e passagens ainda haja um reconhecimento deste letramento do pedestre que produz seus textos sem parar e não deixa rastros nem de onde veio e nem para onde vai.

Paula Janovitch é historiadora e antropóloga. Autora do roteiro Os segredos das passagens: percurso pelas galerias do Centro Novo do livro Dez Roteiros Históricos a pé em São Paulo.

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