A Vida no Centro

Franquezas

Edson Franco é jornalista com passagens por Folha de S.Paulo, revistas Galileu, Ele Ela, Guitar Player Brasil, IstoÉ, portal Terra e Canal Rural. Em quase todas essas publicações escreveu sobre música, fazendo críticas e entrevistando gente que vai de Wando a B.B. King. Músico diletante, toca guitarra nas horas vagas e discoteca em baladas de música brasileira dançante. É coautor do livro “Música Popular Brasileira Hoje” (Publifolha) e editor de “Zózimo Diariamente” (editora EP&A). Música é o centro da discussão aqui.

Dê uma chance ao motorista do Uber

Apesar do risco de deparar com um fã de sertanejo universitário ou bolsonarista furioso ao volante, corrida pode render papos deliciosos sobre temas como suicídio, carreira degradada pelo álcool ou cães fofos

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Tempo de leitura:5 minutos

Causa angústia a possibilidade de passar algumas dezenas de minutos trancafiados em um veículo conduzido por uma pessoa que curte sertanejo universitário em alto volume, ignora o caminho até a avenida Paulista ou passa a maior parte do tempo defendendo a tese de que um avô não tem o direito de comparecer ao velório do neto de sete anos.

Já passei por todas as experiências acima. E esse conjunto me fez tomar uma decisão radical: só entro em um Uber com alguma coisa para ler e com o fone de ouvido ao alcance das mãos. Livros, tablets, celulares, revistas e Spotify formam um escudo invisível contra boa parte das inconveniências que podem partir do banco da frente. Mas, antes de colocá-los em ação, sempre dou uma chance para a conversa fluir. Vai que…

Trajeto longo e papo bom

No dia 17 de fevereiro deste ano, um sábado, embarquei no Fiat Siena do Antônio Carlos, cearense da cidade de Independência. O trajeto era longo, de Perdizes ao Carandiru, e demorou mais que o planejado devido a mais um dia de chuva na capital. Logo nas primeiras generalidades que trocamos, senti que o papo iria fluir.

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Em poucos minutos a intimidade cresceu e me peguei falando sobre como foi liberar o corpo da minha mãe quando ela morreu, em 1987. Após uma breve avaliação das diferenças entre serviços funerários públicos e privados, ele passou a contar uma história que, caso chegássemos ao destino antes do fim, eu pagaria um extra para ouvir até o último capítulo.

Na época do ocorrido, Antônio Carlos vivia em Fortaleza, capital onde, diz ele, as pessoas pagam “uma merrequinha” por mês para ter direito a um lugar para cair morto e dignamente embalado. Um usuário desse serviço indesejado foi um sobrinho seu, que morreu com apenas 22 anos.

Na verdade, o rapaz se matou. Primeiro, arremessando o carro que dirigia contra um caminhão numa rodovia. Apesar do impacto que destroçou o veículo, o moço saiu de lá com vida. Depois, ainda atônito e já recebendo a ajuda de alguns populares, ele achou uma brecha, desvencilhou-se da pequena multidão e se atirou na frente de outro carro que vinha em alta velocidade. Atingiu seu objetivo.

Como irmão da mãe do rapaz, Antônio Carlos foi designado para ir ao IML reconhecer o corpo. Tão forte quanto isso, foi a razão do suicídio. “Meu sobrinho era homossexual. A mãe dele nunca aceitou e fazia questão de demonstrar isso. Os anos de indiferença e falta de afeto foram mais do que o menino conseguiu suportar.”

Do campo para o volante

Na quinta-feira passada, dia 7, fui ao Pacaembu ver o meu Santos jogar contra o América de Natal, pela Copa do Brasil. Depois de uma cerveja com os amigos e feliz pela vitória por 4 a 0, peguei o celular e chamei o Uber. O aplicativo me informava que o motorista era o Roger Ludson, que chegou instantes depois em um Renault Sandero.

“Você estava no jogo?”, perguntou ele. Ao ouvir a resposta afirmativa ele se apressou em dizer que também estava, “e do lado da torcida do América”. “Como assim? Você é potiguar?”, emendei. “Não. Sou amigo de um jogador do time. E ele me prometeu dar a camisa que trocou com o Alison do Santos.”

O amigo a quem Roger se referia era o seu xará Roger Gaúcho, um meia-atacante habilidoso, atrevido e que provocou as raríssimas acelerações cardíacas entre os zagueiros da equipe paulista. Foram apresentados por um amigo comum, que brincava com o fato de terem o mesmo nome.

Roger Gaúcho foi revelado pelo Internacional de Porto Alegre e passou pelo próprio Santos (quando a amizade entre ele e o motorista começou), Ponte Preta (época em que se tornaram melhores amigos) e Bucheon da Coreia. Apesar do inegável talento com a bola nos pés, ele jamais se firmou em nenhum clube. “Culpa da bebida”, revelou Ludson.

O motorista lembra que, em 2013, nos tempos da Ponte Preta, a situação ficou mais preocupante. “O salário dele era de R$ 40 mil, mas, dez dias depois de receber, ele vinha pedir algum emprestado. E eu emprestava.” O jogador jamais esqueceu e, sempre que vem a São Paulo a trabalho, convida Ludson para a partida e, invariavelmente, o presenteia com a camisa que trocou com o adversário. “Já tenho mais de 50. E agora vou voltar correndo pro hotel tentar pegar a de hoje.”

Interesse comum

No dia 1º deste mês, fui encontrar uma amiga na Cervejaria Tarantino (volto a falar sobre esse lugar espetacular em um post futuro), no bairro do Limão. Dessa vez, o aplicativo me presenteou com Nizia Maria, que mora a poucos quilômetros da minha casa e pilota habilmente um Honda Civic. Nas idas e vindas do papo, surgiu uma paixão comum: cães.

Mineira como o marido, Maria trouxe para São Paulo dois cachorros, um lhasa e um chow-chow. Passou boa parte do trajeto falando da dor que foi a perda deste último. Depois daquela solidariedade que só quem também convive com uma cachorrinha pode passar, ficamos nos incentivando mutuamente a aumentar a matilha caseira, hoje composta por apenas um animal.

Falei que o meu sonho era ter um outro, mas grande, o que me é impossibilitado pelo fato de morar em apartamento e não dispor de tempo para até três passeios diários. Ela também tem predileção por cães de grande porte. “Entre eles, o que mais gostaria de ter é um bernese”, assinalei. Virando-se para o banco de trás, ela falou: “Você tá de brincadeira, eu amo esse cachorro”. Quando o semáforo fechou, ela abriu seu celular e mostrou várias fotos de exemplares da raça.

Ainda surpresa com a coincidência, ela passou a falar sobre as pesquisas que fez a respeito. “Eles são lindos e simpáticos, mas vivem pouco, cerca de nove anos. Mas eu descobri um canil em Santa Maria (RS) que desenvolveu uma linhagem que vive bem mais. Quando eu e meu marido resolvermos ter o nosso, vou até o Rio Grande do Sul buscar.”

As conversas acima não são regra, mas também não configuram exceções. Ao longo da minha vida de usuário do aplicativo colecionei várias outras histórias memoráveis. E, no final da corrida, as recompensei, com grana extra e elogio. Assim, meu caro motorista de Uber, se ao olhar no retrovisor você me ver lendo ou com os fones de ouvido, não espere pela gorjeta.

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