A Vida no Centro

Franquezas

Edson Franco é jornalista com passagens por Folha de S.Paulo, revistas Galileu, Ele Ela, Guitar Player Brasil, IstoÉ, portal Terra e Canal Rural. Em quase todas essas publicações escreveu sobre música, fazendo críticas e entrevistando gente que vai de Wando a B.B. King. Músico diletante, toca guitarra nas horas vagas e discoteca em baladas de música brasileira dançante. É coautor do livro “Música Popular Brasileira Hoje” (Publifolha) e editor de “Zózimo Diariamente” (editora EP&A). Música é o centro da discussão aqui.

O jazz, o Centro e os ouvidos de Ana Ká

Edson Franco fala sobre sua experiência em shows com uma companhia mais do que especial

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Conduzido pelos ouvidos de Ana Ká (não se afobe, explico mais abaixo quem ela é), fui ver meu primeiro show de 2018. E foi no Centro, no dia 6 de janeiro. Assistimos a uma apresentação do “organ trio” Hammond Grooves no Jazz B.

Essa casa fica na General Jardim, rua da qual a única imagem que me vem à memória é a da sede da Aliança Francesa, onde, por alguns meses, tentei aprender o idioma da Eva Green pela segunda vez.

Logo depois de, burocraticamente, dar as cinco estrelas para o motorista do Uber, fui exposto a um festival de surpresas, na maioria agradáveis. A começar pela fachada do lugar. Todo envidraçado, o Jazz B parece orgulhoso de expor suas vísceras. Mais que isso. Generosamente, distribui para os passantes doses abafadas da riqueza musical que abriga.

Do lado de dentro, dois andares para a plateia, muito cimento queimado, tijolos à mostra, mesas e cadeiras desuniformes e um palco modesto, que oferece uma proximidade quase endoscópica entre músicos e ouvintes.

Entre os frequentadores, muita gente bacana. Casais de meia idade em busca de experiência similar àquela que devem ter tido em clubes de jazz no hemisfério norte, jovens incapazes de cantar um refrão dos músicos que adornam as atuais latas de Coca-Cola e, inevitável, os sujeitos que se comportam ruidosamente, como se estivessem numa casa de swing (não aquele ligado ao jazz) em Moema.

Diferentemente do som que rola por ali, o serviço da casa precisa de uma afinação urgente. Visualmente, tá tudo lindo. Os atendentes ostentam uma fachada hipster, o barman é sarado e o cardápio dá conta de famintos e bebedores exigentes. O problema é o tempo entre conseguir a atenção de um garçom e a chegada do pedido à mesa. Naquela noite, chegamos a esperar mais de meia hora pelo chope artesanal oferecido ali. Enfim, nada que estragasse a noite, mas, sem dúvida, foram desencontros que a afastaram da perfeição.

A Ana Ká conhece os caras da banda. Enquanto eles ainda estavam à paisana, teve início um papo entre ela e Daniel Latorre (órgão Hammond), Filipe Galadri (guitarra) e Wagner Vasconcelos (bateria). Fico tomado por uma timidez de elevador nessas situações. Animadamente, eles falavam sobre gente que eu não conhecia e experiências que espero um dia viver. Assim, mais ouvi do que falei.

Começa o show e logo vi que teríamos mais assunto no final. O Hammond Grooves faz um tipo de som sacolejante, com releituras espertas de standards do jazz, pop clássico e composições próprias que, por vezes, se deixam balançar por ritmos brasileiros. É uma pororoca que junta Coltrane, Cobain e Marcos Valle e em que todos saem ganhando.

Terminada a apresentação, Daniel, o organista, sentou-se à nossa mesa. E falamos por horas sobre Jimmy Smith, Duke Ellington, John Coltrane, a citação de “Sylvia” (do grupo holandês Focus) em um solo e, sobretudo, sobre o grupo Masters of the Groove. Esse foi o primeiro “organ trio” que vi na vida, no Bourbon Street, num show que deu início ao fim do meu segundo casamento (comprometo-me a narrar esse episódio num post futuro e já adianto: vai ser textão!).

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Volto à Ana Ká. Conheci a moça no aniversário de uma amiga comum há uns dez anos. De lá para cá, nossa paixão por música fez com que víssemos vários shows juntos. Di Melo, Joe Louis Walker, Larry McCray e Wanderléa são exemplos. Isso sem contar as idas conjuntas a pubs, baladas de samba-rock no Centro e festas micadas na Vila Olímpia. Generosa que só, ela se dispôs a me acompanhar até em jogo do Santos na Vila Belmiro!

Nossos arranjos funcionam mais ou menos assim. Em alguns sábados, por volta da hora do almoço, eu recebo uma mensagem por WhatsApp: “E aí, queri, beleza? Qual é a boa de hoje?”. Ao ouvir a resposta, a Ana Ká se revela o tipo de pessoa que eu adoro, aquele que ao ouvir “vamos?” responde “vamos”. A partir daí, ocupo-me em tornar a tarde legal, pois a noite com certeza será.

Será legal, sobretudo, porque terei ao meu lado os ouvidos da Ana Ká. Dona de uma voz doce e ótima cantora, ela sempre tem algo significativo a dizer a respeito das músicas que embalam nossas noites. Volto pra casa com a percepção de que vi mais de um show.

Ao ver a gente em dupla muitas vezes na balada, amigos e amigas mais curiosos e ousados perguntam por que a gente não muda o status de relacionamento. E eu quase sempre respondo do mesmo jeito.

Já fui casado duas vezes, e o mais recente deles acabou há mais de 15 anos. Casamentos acabam. E, na minha experiência, eles terminaram de uma maneira que tornou impossível uma reconciliaçãozinha, mínima que fosse, para que a gente pudesse reviver as coisas bacanas que costumávamos fazer juntos. Isso dói, mas dá para seguir em frente.

Agora, não estou disposto a correr o risco de perder uma amiga que cultua com a mesma intensidade a coisa que mais amo. Me vem uma agonia desesperadora só de levantar a hipótese de um dia eu não ser mais convocado para dizer qual é a boa de hoje. De não ter a perspectiva de compartilhar uma noite musical com os ouvidos da Ana Ká.