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Seja feito na própria cozinha ou comprado de um pequeno produtor, o pão caseiro se tornou o símbolo da quarentena
Já reparou que tem muita gente produzindo pão? Como o pão caseiro se tornou o símbolo da quarentena.
Denize Bacoccina
Semana passada fiz o meu primeiro pão caseiro. Não foi ainda com o levain, de fermentação natural, mas com um fermento industrializado. Mas deu certo. Ficou meio tortinho, mas bem gostoso. E o que fiz enquanto saboreava as fatias da minha primeira incursão pela panificação? Como milhares de outras pessoas já haviam feito nos dias anteriores, digitei “batedeira planetária” no Google. E começou ali o meu relacionamento, ainda não sei se duradouro, mas com certeza sério, com o pão caseiro. O equipamento chegou nesta semana, e a aparência do segundo pão já ficou bem melhor. E muito gostoso, com aquele sabor de fui eu que fiz.
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Pra quem quer testar, aqui vai a receita que eu usei.
Desde que começou a quarentena, tenho feito comida – café da manhã, almoço, jantar – diariamente, incluindo um bolinho no meio da tarde alguns dias. Não tenho nenhuma dificuldade em comprar pão industrializado – vários supermercados e mercearias por perto, e nem preciso sair de casa, pois estão entregando. Mas fazer o próprio pão vai além de uma necessidade de matar a fome.
Ao começar a refletir sobre isso, percebi que não era a única. Um grande movimento em torno do pão caseiro se formou nas últimas semanas, e só vem crescendo. O pão caseiro se tornou o símbolo da quarentena.
A impressão pode ser confirmada pelas inúmeras matérias dedicadas ao assunto na imprensa. A edição de sábado do jornal O Estado de S. Paulo trazia a receita do pão com o fermento natural que o jornal já havia ensinado a preparar na semana anterior. No dia seguinte, a Folha de S. Paulo também vinha com a sua receita de pão caseiro.
Mas de onde vem essa vontade de fazer o próprio pão? Muitas pessoas cresceram vendo suas mães e avós assando pães. Mas muitas, como eu, achavam que esse tipo de receita parecia muito complicada para o nosso modo de vida urbano, de pouca permanência em casa. Ao contrário de outros pratos, o pão exige um tempo de maturação e uma paciência que não combinava com o nosso estilo de vida pré-pandemia.
Agora, neste momento de isolamento, permanência em casa é o que temos de mais abundante. E, para muitos, vem também a vontade de se conectar com o passado – no sentido afetivo – e com a nossa essência.
Apesar de sua má reputação nos últimos anos, o trigo é o que temos de mais básico em termos de alimentação humana. Foi a partir do cultivo do trigo que o homo sapiens inventou a agricultura e se fixou em assentamentos, deixando a vida nômade. Não é à toa, portanto, que a gente sinta essa conexão ancestral com o alimento.
E por que este resgate agora? A meu ver, por dois motivos. Em casa, as pessoas têm mais tempo para se dedicar à cozinha. Além disso, buscam também alimentos de maior qualidade, saudáveis, que alimentem o corpo e também a alma. Vem daí também o enorme sucesso de sites de culinária, como o Panelinha, comandado por Rita Lobo, que vem fazendo transmissões ao vivo na hora do almoço, ensinando as pessoas a preparar vegetais para enriquecer sua alimentação.
A professora de inglês Daniela Lima começou a fazer pão em casa nas últimas semanas porque achou que era mais fácil do que sair de casa para comprar. “Fiquei com preguiça de sair de casa para comprar o pão na quarentena e resolvi me arriscar”, conta. Ela também se lembrou dos sabores da infância, no interior, quando via a bisavó fazendo pão todos os dias e enchendo a rua com o cheiro que saía do forno.
“Eu ficava encantada. Mas nunca achei que tivesse tempo para fazer pão, com a vida corrida. Agora, que estou em casa, isso mudou”, diz ela. “Eu faço um por semana. E já estou no terceiro e este último ficou incrível.” Ela também vem postando suas criações no Instagram e percebe o retorno das amigas, que também estão experimentando na culinária nesse período. “Acho muito legal esta rede”.
Tanto os supermercados quanto as lojas especializadas em farinhas especiais tiveram aumento nas vendas de farinha de trigo desde o início do isolamento.
Iris Jönck, proprietária da loja online Farinhas Italianas, conta que o movimento é crescente desde que começou com a importação do produto, em 2012, mas notou uma alta de 50% desde o início da quarentena.
“Minha sensação é que as pessoas começaram a fazer pão em casa. Aí resolveram investir numa farinha legal”, conta Iris. Além da farinha, aumentaram também as vendas de acessórios e utensílios para pizzas. “As pessoas têm mais tempo para cuidar do que comem e para se dedicar ao que gostam”, constata.
Nem todo mundo, claro, tem tempo, disposição ou espaço físico para fazer o próprio pão. Mas a vontade de consumir algo feito com cuidado artesanal permanece. E pode ser satisfeita por quem se dedica exclusivamente a isso.
É o caso do produtor-executivo Alex Bezerra, que há pouco mais de seis meses montou uma padaria artesanal em casa, no Copan, a Copão. Antes mesmo da pandemia, ele sentiu a necessidade de uma mudança de vida após o luto pela morte da mãe, no fim do outro ano, e começou a investir no pão como uma forma de se conectar com as raízes. Veio a pandemia e a quarentena, e os pedidos dispararam. “Cresci em um mês o que demoraria seis meses em uma situação normal”, conta ele.
Ele faz o fermento natural, alimentado diariamente, e prepara os pães de quarta a sábado, dedicando os outros dias a planejar o cardápio, inventando novos sabores e recheios. A entrega é feita por ele mesmo, quando é no prédio ou nas imediações, ou por uma pessoa contratada, quando é mais distante. Ele quer crescer, aumentando o tamanho das fornadas, mas mantendo o aspecto artesanal. “Quero manter o gosto de pão caseiro”, diz Alex. “Não quero ficar escravo do negócio. No máximo ter uma portinha para vender a produção do dia, acabou, fecha. Trabalhar pra viver, não pra ficar rico”, diz.
O retorno dos clientes, conta Alex, é a maior motivação. “Eu ouço dos clientes que o pão é a melhor descoberta da quarentena”, conta. Outros, depois de experimentar, mandam de presente para amigos ou parentes. “O que a gente está distribuindo na padaria é um conforto”, diz Alex.
O arquiteto Daniel Fujiwara fez um movimento semelhante há seis anos, em Brasília, quando, num momento de crise no setor de construção civil, pensou em entrar no ramo de alimentação, menos suscetível a oscilações. Começou a fazer pães artesanais em casa e entregar na casa dos clientes. Caiu no gosto da clientela, começou a distribuir em alguns empórios e hoje tem uma concorrida loja e um clube de pães e distribui outros produtos artesanais e orgânicos, a PastaMadre.
“Comecei a fazer em casa para desestressar da rotina do trabalho e porque era difícil encontrar um pão de qualidade por perto. A cada pão que crescia perfeito no forno me dava uma sensação de satisfação, de vitória, essa sensação perdura até hoje”, conta Daniel.
Sensação que, neste momento de pandemia, quando a incerteza domina a nossa vida, pode resgatar um sentimento de autonomia, de ser capaz de produzir o seu próprio alimento. Um alimento que não serve apenas para matar a fome, mas para nutrir o corpo.
E o quanto disso deve continuar depois da quarentena? Não dá pra saber com certeza, mas eu arriscaria um palpite: nem todo mundo terá o tempo que tem hoje para cozinhar em casa, a maioria voltará a passar a maior parte do dia fora. Mas, uma vez que as pessoas descobrem uma coisa boa, elas dificilmente voltam atrás. Esta é a tendência. Investir mais em saúde, em qualidade de vida e em bem-estar.
Da minha parte, ontem saiu o segundo pão. Bem melhor do que o primeiro. E junto veio exatamente essa sensação de orgulho por ter sido capaz de fazer alguma coisa nova, que antes, não muito tempo atrás parecia inacessível. Uma vitória, uma conquista, um aprendizado. Nos dias de hoje, não é pouco.
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