A Vida no Centro

Marcio Aquiles

Tipologias Ficcionais

Marcio Aquiles é escritor, crítico literário e teatral, autor dos livros Artefato Cognitivo nº 7√log5ie (Prêmio Biblioteca Digital 2021); A Cadeia Quântica dos Nefelibatas em Contraponto ao Labirinto Semântico dos Lotófagos do Sul; A Odisseia da Linguagem no Reino dos Mitos Semióticos; O Eclipse da Melancolia; O Esteticismo Niilista do Número Imaginário; entre outros. É um dos organizadores da obra Teatro de Grupo (Prêmio APCA 2021). Foi jornalista e crítico da Folha de S.Paulo, e desde 2014 trabalha como coordenador de projetos internacionais na SP Escola de Teatro. A coluna trará resenhas de espetáculos em cartaz na cidade e textos sobre literatura.

“Saturno Translada” expõe as vísceras do Brasil contemporâneo

Sem reducionismos, novo romance de Lucas Lazzaretti desnuda como a realidade sórdida tem o poder de extinguir sonhos e sujeitos

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Sem reducionismos, novo romance de Lucas Lazzaretti desnuda como a  realidade sórdida tem o poder de extinguir sonhos e sujeitos

O enredo central de “Saturno Translada” (7Letras, 244 p., R$ 65), novo romance de Lucas Lazzaretti, gravita em torno de um grupo de jovens beirando os 30 anos e prestes a deixar o Brasil, para onde o narrador principal acaba de voltar depois de um doutorado em composição musical na Juilliard School. Os motivos para a debandada são vários, embora todos correlacionados à nossa malfadada teocracia em vertigem: um artista perseguido por beócios e fanáticos político-religiosos por ser artista, e gay, e pobre; uma acadêmica gabaritada sem oportunidade alguma numa nação que considera o investimento em ciência e tecnologia (em pleno século XXI) como algo supérfluo, ou seja, onde quem é acéfalo parece se dar melhor; um outro foge para cortar grama, lavar pratos e buscar um rumo qualquer longe daqui.    

São fatores que denotam como uma realidade sórdida tem o poder de extinguir sonhos e sujeitos. Há uma tristeza metafísica que atravessa as personagens, contudo elas não são niilistas, não estão de ‘mi-mi-mi’ injustificado – estão, sim, massacradas por uma nação onde somente três castas detém direitos e poderes: a alta esfera política, a latifundiária extrativista e a rentista-especuladora, uma situação socioeconômica abjeta que mais parece algo meio século XVI, XVIII no máximo, e não o terceiro milênio do calendário gregoriano.

O mais significativo é a estratégia que o autor usa para construir essas relações. Ele não foca no binarismo político e na crítica simplória, nem a essa extrema direita genocida, boçal, retrógrada e representante de tudo o que há de pior para a espécie humana (a qualquer um que não esteja dentro de suas milícias criminosas), como tampouco ao esquerdismo caviar da pseudointelectualidade que acredita em partido puro, mártires incorruptíveis e Papai Noel (seja por desfaçatez ou por incapacidade de executar mais que cinco sinapses simultâneas).  

Com sagacidade, Lucas Lazzaretti foge (de certa maneira) dessas encrencas, uma vez que o momento histórico é unidirecional, dada a unanimidade, entre os seres racionais, de que o bolsonarismo é a pior tragédia – no sentido ético, econômico, social, cultural, ambiental e simbólico – já ocorrida nessa república, uma perversidade capaz de transformar políticos medíocres ou santinhos do pau oco em gênios da raça. O romance, ou boa parte dele, está localizado no fatídico ano de 2016, porém não toma o rumo da interpretação teleológica rasa – o que um autor mediano, que não é o caso, faria –, centrando todos os acontecimentos posteriores como exclusivamente derivados do ovo da serpente golpista.  

Assim, ao realizar esse deslocamento temporal, evita cair nas polêmicas infantis ou na baboseira arrogante de gente que se acha erudita mas tem a maturidade intelectual de um pré-adolescente. Em vez disso, compõe um enredo em que as personagens são – e muito – afetadas pelo ambiente sociopolítico nacional, porém dotadas de complexidades e relevo para sobressaírem a determinismos de ordem naturalista. Não se trata, contudo, de uma narrativa de reflexos, haja vista que esse enredo reverbera right now, porém sem cair nessas armadilhas que transformariam um romance em manifesto panfletário – igualmente potente, porém não necessariamente com valor literário.

Trata-se de um romance escrito por alguém cuja envergadura mental é patente (tem pós-doutorado em filosofia, domina múltiplos idiomas) e, o principal, com audácia literária para tratar – ficcionalmente – de questões complexas como misoginia, racismo e xenofobia (sendo homem branco e morador de Curitiba), porque entende que lugar de fala é diferente de exclusividade de fala, conceito fundamental para se entender (também) no campo literário.  

Nesse aspecto, aliás, não há nada de controverso no volume, pelo contrário, todo o conteúdo é ‘progressista’, democrático e profundo, mas todos sabemos que o autor poderia facilmente ser cancelado por alguns cabotinos pela ousadia em versar – por sua constituição étnica-biofísica-cultural – sobre tais temas, mesmo sendo eles tangentes e acessórios ao núcleo duro dessa obra cujo Leitmotiv é o pessimismo e a desilusão com o futuro.

Temos ali questões procedimentais à la Thomas Bernhard, que primeiro desconstruía a cultura germânica, suas tradições, a religião católica, e o até então considerado eminente idioma, para, no fim, avacalhar geral com todos nós, espécie bípede medíocre cujos sonhos são tais quais ordinários. Lazzaretti faz esse mesmo movimento, de ir descascando a cebola: inicialmente o alvo são os sonhos burgueses, nossa nação corrompida (amei a analogia com “um tobogã de gilete com uma piscina de vinagre no final”), a melancolia juvenil, a vulnerabilidade latino-americana frente à opressão estadunidense, e, quando percebemos, não resta quase nada além do bichinho humano, frágil e atroz, concomitantemente. Esse andamento degenerativo também é indicado pelos títulos dos capítulos: Pústula; Coágulo; Escoriação; Carcinoma.

Trabalho soturno, escrito com rigor conceitual e fartura criativa, um dos melhores romances lançados em 2022 até agora.  

@marcioaquiles

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