A Vida no Centro

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Chico César: Vejo o Brasil de 2020 com otimismo. Quando as máscaras caem é que as caras são vistas

Em entrevista ao A Vida no Centro, o cantor e compositor Chico César fala de sua relação com São Paulo e de como vê a situação atual do Brasil

Clayton Melo e Denize Bacoccina

Chico César nasceu em 1964 em Catolé do Rocha, no interior da Paraíba, mas já vive em São Paulo há mais tempo do que na sua terra natal. O paraibano chegou à capital paulista com 21 anos, em meados dos anos 1980, depois de uma curta temporada no Rio, e se encantou com a cidade. Em vez do caos urbano e da violência de que ouvia falar, foi morar na Vila Madalena, ficou surpreso com a tranquilidade da vida que encontrou no bairro, na época com poucos bares e um jeitão de cidade do interior. “Eu achei a cidade muito mais humana do que eu esperava”, contou em entrevista ao A Vida no Centro.

Formado em jornalismo na Universidade Federal da Paraíba, Chico trabalhava como jornalista e revisor de textos nos primeiros anos na cidade. Até que em 1991 foi convidado a fazer um turnê pela Alemanha e decidiu se dedicar integralmente à música. Quatro anos depois, estourou com o álbum Aos Vivos, com o hit Mama África, que levou sua música ao mundo todo.

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Desde então, o artista já lançou 14 discos, fez shows no mundo inteiro e, nos últimos meses, como boa parte dos brasileiros, ficou recolhido em casa. Compondo. Já fez mais de 80 músicas nos meses de quarentena. Algumas sobre a situação de isolamento em que nos encontramos, outras sobre seus temas habituais, como amor, festa, dança, amizade.

No sábado, dia 19 de setembro, Chico César fez show no terraço do Martinelli, como parte do Festival A Vida no Centro, evento online e gratuito de arte e cultura que pode ser acessado pelas redes sociais do portal A Vida no Centro.

Veja o vídeo do show gravado ao vivo:

No show, Chico ajudou a arrecadar doações para a Associação dos Freis Franciscanos, que diariamente distribuem mais de 2 mil refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade. Para doar, é só clicar neste link.

Leia a entrevista exclusiva ao A Vida no Centro:

A Vida no Centro – Você se mudou para São Paulo aos 21 anos. Como foram seus primeiros anos aqui e como você descreve a sua vivência na capital? A partir de suas experiências pessoais, o que São Paulo significa para você?

Chico César – Eu cheguei em São Paulo na noite do dia 16 de março de 1985. Eu tinha 21 anos, vinha de Barra Mansa, onde eu tinha passado cinco meses, depois um mês no Rio. E pra mim foi uma iluminação, uma revelação a cidade de São Paulo. Eu cheguei pela rodoviária do Tietê. O  meu irmão me pegou e me trouxe para a Vila Madalena, para a rua Aspicuelta, a casa de uma amiga chamada Maria Luiza Fontenele, Malu. Na verdade era a casa da mãe dela, a dona Débora. Ele me pegou, passamos ali pelo Anhangabaú, depois ele desceu até a Avenida Brasil, Henrique Schaumann, depois deve ter descido a Cardeal até chegar na Vila Madalena. E pra mim foi uma revelação, porque a imagem que eu tinha de São Paulo era enchente todo o tempo, violência, a Rota na rua. E eu cheguei e era uma noite de lua, uma noite bonita de maio. E a Vila Madalena era uma cidade do interior, bastante residencial, casas. Nessa época só havia três bares. Pensei “que cidade linda, maravilhosa”. No dia seguinte, acordei e fiquei na rua, na calçada. Passou o Arrigo Barnabé e eu falei: caramba. Foi como se eu estivesse em Paris e passasse o Jean-Paul Sartre, um símbolo da cidade. Foi como umas boas-vindas. Eu fiquei uns cinco meses na casa dessa minha amiga. Ia para a praça onde iam as babás, eu levava a filha dela quando ela ia para a Usp. Ia a festas dos amigos dela. Fazíamos alguns saraus na casa da mãe dela quando ela não estava. Eu achei a cidade muito mais humana do que eu esperava.

Quais foram as mudanças principais que, em sua opinião, entre a São Paulo das décadas de 1980/90, quando chegou aqui, e a cidade de agora?

A cidade se verticalizou bastante. A própria Vila Madalena onde eu cheguei, adensou. Havia três bares agora deve ter uns três mil. A cidade muda tudo, o tempo todo. Uma mudança que eu observei foi a chegada das ciclovias. Pra mim essa foi uma mudança maravilhosa. Agora vai retroceder um pouco.

Essa cidade que muda o tempo todo. Essa cidade que vai de Jânio Quadros pra Erundina, Pita, que muda politicamente o tempo todo. Eu acho isso muito bacana. É uma cidade viva em todos os sentidos.

Nesses primeiros anos na cidade você dividiu apartamento com o Zeca Baleiro, né? Que histórias você lembra dessa convivência?

Não foi bem nos primeiros anos. Eu cheguei na metade da década, ele chegou no final. Nós morávamos numa casa que era super frequentada por intérpretes na Avenida Heitor Penteado, que é uma avenida onde os carros nunca andam. Não andavam naquela época e agora também não. O metrô chegou perto, antes não tinha.

Uma coisa que sinto que mudou muito na cidade foi a presença dos africanos. Que é uma presença mais recente aqui. Isso deixou a cidade mais universalista, mais metrópole. Não pode haver uma cidade sem as falas da África.  Nós compúnhamos muitas músicas. Descíamos para ver a Copa do Mundo na Padaria Ceará. Comíamos ali o nosso X-Salada. Às vezes andávamos de perna de pau pra divulgar a venda de apartamentos que iam ser construídos. São lembranças boas.

Qual sua relação com o Centro de São Paulo: você costuma, ou costumava frequentar? O que o Centro desperta em você?

Eu nunca fui muito de ir ao Centro. O centro das grandes cidades me dá um pouco de medo. Apesar de eu ter conhecido Recife quando eu tinha 11 anos, que pra mim é a maior metrópole do mundo. Quem sobreviveu a Recife pode sobreviver a qualquer outro lugar, do ponto de vista do temor. Quando eu cheguei havia vários cineclubes no centro da cidade. Eu ia bastante. Ia ver muitos shows na Praça da República. Vi Mulheres Negras logo na minha chegada. O centro me desperta um pouco de temor. Eu sou uma pessoa mais da periferia, dos bairros. Eu vou pouco, ainda hoje. Às vezes vou no Arouche. Tem um restaurante francês que eu gosto. Conheci na chegada, por acaso. Gostava de ir na santa Efigênia pra comprar as fitas de rolo pra fazer minhas fitas demo.

Seu primeiro álbum (Aos Vivos) está completando 25 anos. Entre as tantas músicas suas que fizeram e fazem sucesso, Mama África faz parte da memória afetiva de muita gente. Qual o sentimento do criador Chico César em relação a essa canção?

Eu adoro Mama África. Porque é uma música que me levou para o mundo todo. No Aos vivos algumas canções marcantes, como Beradêro, que abre o disco e que é uma música que me define. Tem À Primeira Vista, que tocou bastante comigo e depois foi gravada por Daniela Mercury e tocou incessantemente no ano que ela lançou. Mama África é uma canção que influenciou a juventude no mundo. Em Moçambique, Angola, e não apenas os que migraram para Barcelona, Madri, mas eles também. Eles me dizem, e eu recebo com surpresa: quando você apareceu, ver alguém cantar Mama África, sem ser africano, e com aquela altivez, elevou a nossa autoestima. Eu sou muito feliz por isso.

Seu álbum mais recente, O amor é um ato revolucionário, é um “comentário sobre suas vivências político-sociais” em relação ao “Brasil convulsionado”, segundo consta em seu site. Como você vê o Brasil de 2020?

Eu vejo o Brasil de 2020 com muito otimismo. Porque eu acho que quando as máscaras caem é que as caras são vistas. Eu acho ótimo que os fascistas mostrem que são fascistas, que as pessoas e instituições, parte da imprensa, que defendeu a queda da Dilma, agora reconheçam de certa forma que ajudaram. Ninguém reconhece dizendo isso, mas dá pra ver. Uma parte da mídia e uma parte dessa burguesia suja – e isso envolve muitos colegas nossos – foi a favor de levar o Brasil para este lugar. Eu sou feliz de olhar para a cara de um fascista e ver onde o fascista está. Não tem muito onde se esconder. Também não tem muito para onde ir. É isso.

Como você vê o Brasil e o mundo hoje em relação às reivindicações sociais, raciais e identitárias?

Como o mundo está, ele está insuportável para a maioria da população. Primeiro pela concentração de riqueza. Você tem 1% da população que é mais rica do que todo o resto. Isso é um absurdo. E o rico não é só quem tem dinheiro, mas condição, benefícios. É quem está aproveitando a vida. Daqui a pouco você vai perguntar: há vida na Terra? Há vida para o 1%. O resto é subvida. As questões do meio ambiente, as questões raciais, as questões de gênero, isso tudo vem pra dizer está errado. E precisamos melhorar, melhorar muito. Pra ficar ruim, tem que melhorar muito. Eu me identifico, eu faço parte desse movimento, sempre fiz. No meu primeiro disco eu canto “é mãe solteira” e agora as mães solo se voltam contra mim porque eu digo é mãe solteira, mas isso foi feito há tanto tempo. No meu primeiro disco eu canto Alma não tem cor, de André Abujamra “porque eu sou branco, porque eu sou negro”, e as pessoas dizem: alma tem cor sim. Eu digo: meu amigo, é uma música.

Acho que se o mundo vai ter de acabar em fogo, e com todos dançando, eu tô no baile, tô nessa.

Você disse numa live que já compôs mais de 80 músicas durante a pandemia. Como foi esse período tão criativo na quarentena?

Eu não tinha muita coisa pra fazer. Normalmente, quando não há quarentena, e já não lembro muito de quando não havia quarentena, eu já compunha bastante. Sempre compus bastante. Agora não há muito o que fazer. Eu toco violão, gosto de compor.

E às vezes a composição aparece quando eu nem esperava. Já estava deitado, coberto e antes de dormir vem uma ideia. Aí eu pego o violão, gravo a ideia. Ou já gravo a música inteira. A pandemia me colocou neste lugar de comentar, de estar presente no mundo. Não necessariamente eu faço as músicas pra isso. Fiz algumas. Mas eu fiz muitas músicas que poderiam ter sido feitas em qualquer outro momento, que falam sobre outros assuntos: amor, festa, dança, amizade, coisas sempre presentes na minha temática também.

E como você vê este momento da cultura do país?

Acho que a cultura nunca foi tão rica, tão questionada e por isso mesmo buscando solução tão criativas. Por um lado, esse bombardeio anticultura. Que na verdade começa com a negação da ciência e vai para a negação do humanismo, e a cultura está ali no meio. Eu acho um privilégio ser bombardeado nessa época e por essa gente. Isso mostra que a cultura tem uma importância. E tem muita gente criando e das formas mais diversas. Tem gente criando pela internet, fotografando. Eu fui fotografado por uma moça que não conheço e vive em Barcelona, creio. E também por um rapaz dos Estados Unidos que também não conheço.

A cultura vai muito bem, obrigado. Ou ela assume que faz parte de tudo, da luta de todos os trabalhadores do mundo, ou ela vai ficar um bibelô. Entretenimento pura e simples.

Qual a sua expectativa em relação ao show no Festival A Vida no Centro? O mirante do Martinelli é um ícone de São Paulo, um prédio histórico. Você já esteve lá? E vamos arrecadar doações para os freis franciscanos, que fazem um trabalho de acolhimento com pessoas em situação de rua, oferecendo mais de 2 mil refeições por dia.

Eu já estive num aniversário da cidade, junto com um padeiro francês e uma outra pessoa, pessoas que vieram de fora e vieram morar aqui.

Acho que vai ser muito bacana. Tocar voz e violão lá, olhando pra cidade lá de cima. A cidade de Adoniran Barbosa, de Rita Lee, do Zimbro Trio, dos Mutantes, de Luis Carlini. Olhar de cima essa cidade que me acolheu. Mas é um olhar de dentro, na verdade. Podia ser um olhar de baixo, podia ser num metrô, numa estação. É uma felicidade poder participar. Ainda mais saber que vamos arrecadar recursos ali pro entorno. Quem puder, dê a sua colaboração para as pessoas que não podem sair da rua, gente que mora na rua, ali neste entorno ali do centro da cidade, deste lugar tão conflagrado, tão disputado, nem sempre bem compreendido.

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