Por Thiago de Souza

Para muito além da importância sanitária, deveria ser obvia a relevância cultural e histórica dos cemitérios, que se destacam por se tratar de verdadeiros museus a céu aberto, que explicam as comunidades melhor do que qualquer outro aparelho público.

E esse não é um privilégio só nosso.

Cidades como Buenos Aires e Paris, que têm, respectivamente, os Cemitérios da Recoleta e Père-Lachaise como roteiros quase obrigatórios, não nos deixam mentir.

Os cemitérios guardam muito mais do que restos mortais. Eles guardam o resultado de um tempo e espaço.

São Paulo é protagonista na construção do Brasil e, não por acaso, seus cemitérios guardam verdadeiros tesouros do patrimônio municipal e, sem modéstia, nacional.

A musealização dos Cemitérios é uma medida extremamente relevante do ponto de vista artístico, social, histórico e cultural. 

Aparelho cultural e educacional

Não basta permitir a entrada de público para visitação, é fundamental apresentar o cemitério como um aparelho cultural e educacional.

O inventário artístico das obras tumulares dispostas nos jazigos, com destaque para seus autores, datas de concepção e seus estilos artísticos, já existe.

Também é bastante difundida a base de biografias das personalidades históricas sepultadas nos cemitérios, o que inclui placas indicativas destacadas, como por exemplo, as que se encontram no cemitério da Consolação.

Certamente essa medida poderia ser estendida a todas as necrópoles históricas, pois além de mudar o olhar dos visitantes, pode ser uma maneira de garantir esse patrimônio.

Afinal, se a medida não impedir completamente ações de vândalos e de larápios, ao menos servirá para que, em caso de incidentes com as peças, estas sejam mais facilmente identificadas em leilões e/ou em outros tipos de comercio ilegal destes itens, que possuem um mercado paralelo extremamente ativo.

Guarda dos túmulos

Mas minha preocupação no momento é com a guarda dos túmulos dos milagreiros e milagreiras dos cemitérios.

Milagreiros e Milagreiras de Cemitério eclodem de um fenômeno devocional que possui muitas características sociais, ritualísticas, mas, fundamentalmente regionais.

E não tenho qualquer reserva em dizer que a devoção atribuída a esta categoria devocional faz parte do patrimônio imaterial das cidades.

Ou melhor, sendo mais preciso, faz parte do patrimônio imaterial de cada região das cidades.

Nesta última dimensão, o Professor Lourival Andrade Junior destaca que estes fenômenos têm:

“… sua relação direta com o espaço em que atuam, portanto, são devoções locais – e isso se dá pelo conhecimento do milagreiro do espaço de vivência de seus devotos.”

Ou seja, há uma indissolúvel relação entre o milagreiro e sua vizinhança, seu bairro e sua comunidade, acessando um sentido essencial de identidade e pertencimento local.

Não é exagero dizer que preservar os milagreiros e as milagreiras dos cemitérios é preservar a própria história de suas regiões.

Em minhas pesquisas, já contabilizei 23 milagreiros em 12 cemitérios da capital.

São eles:

Cemitério da Vila Alpina – Z. Leste – (13 almas do Joelma)
Cemitério da Penha  – Z. Leste (Cesinha, Coca e Mari Aninha)
Cemitério Vila Formosa –  Z. Leste (Menina Débora)
Cemitério Quarta Parada – Z. Leste (Felisbina Muller, Padre Adelino e Arnaldinho)
Cemitério Araçá – Z. Oeste – (Menino Guga)
Cemitério da Lapa Z. – Oeste (3 Marias e Maria Antônia Soares)
Necrópole São Paulo – Z. Oeste (Izildinha de Castro)
Cemitério Chora Menino –  Z. Norte (Garotinho e Neusinha VIdal)
Cemitério da Freguesia do Ó – Z. Norte 1 (Padre Monteiro)
Cemitério Consolação – Centro (Antoninho da Rocha Marmo, Maria Judith e Domitila de Castro)
Cemitério Santo Amaro  – Z. Sul (Bento do Portão, Alzira Branco Jacinto e Noêminha)
Cemitério Vila Mariana – Z. Sul (Luiginho e Marquinho)

Relação com a comunidade

Sendo assim, pedi à Prefeitura de São Paulo para que se incluam no rol de sepulturas consideradas de “pessoas sujeitas à devoção popular” os milagreiros e milagreiras não dispostos no relatório fotográfico organizado pela municipalidade.

O tema, infelizmente, é muito menos debatido do que se deveria e ainda pouco explorado em sua instância mais interessante, que é o senso de regionalidade.

Poucas pessoas compreendem as nuances do fenômeno amplamente disseminado no país e que é uma verdadeira flor de lótus comunitária.

Nele se percebe a conversão das dores individuais ou coletivas (claro, a partir de mortes, muitas vezes trágicas), em compaixão, devoção e esperança.

O povo se compadece com a dor do próximo mostrando um genuíno senso de empatia coletiva.

Também é muito perceptível o sentimento de pertencimento e acolhimento sentido nos fiéis, já que as “almas” ou “túmulos” de milagreiros são totalmente ligadas às pessoas e lugares que eles se estabelecem.

Milagreiros do Centro de São Paulo

No centro de São Paulo, em sua principal Necrópole – Cemitério da Consolação -,  há três representantes desta classe devocional.

Antoninho da Rocha Marmo é cultuado no Brasil todo e até a Igreja estuda seus possíveis milagres.

O menino milagreiro, que tinha como brincadeira favorita ministrar missas católicas no quintal de sua casa, previu a data de sua morte, que ocorreu em 21 de dezembro de 1930, depois de ser acometido de tuberculose.

Em 19 de outubro de 2021 seus restos mortais foram exumados e levados do Cemitério da Consolação para a Cidade de São José dos Campos, onde repousa atualmente sob o altar da Capela de Nossa Senhora da Saúde, situada no instituto hospitalar que leva seu nome.

Maria Judith de Barros é outra milagreira extremamente requisitada.

A mulher, que possuía uma doença degenerativa e que sucumbiu após uma das constantes sessões de violência doméstica que seu marido a submetia, sempre foi muito lembrada por moradores da região central de São Paulo.  Mas, no início dos anos 2000, Maria Judith passa a ser a Milagreira dos Vestibulares.

O curioso fenômeno se deu após a sugestão de um professor do terceiro colegial de uma escola da região, que, em uma visita ao cemitério, propôs aos seus alunos que pedissem ajuda de Maria Judith para passarem no vestibular.

Maria Judith atendeu todos os pedidos e sua fama correu por todos os cursinhos da cidade.

A quantidade de ex-votos em seu túmulo, ou pelo menos as marcas deixadas por eles (já que quase todos foram furtados), dão mostra de como Maria Judith é eficiente.

Marquesa de Santos, a milagreira

Ainda há uma milagreira no Cemitério da Consolação que está na história do Brasil Império.

Domitila de Castro.

A Marquesa de Santos é uma milagreira no cemitério do qual foi benemérita, uma vez que doou o terreno para sua construção.

Não há muitos ex-votos estampando seu jazigo, mas sua devoção ultrapassa os domínios da cidade dos mortos, levando-a ao posto de Milagreira Protetora das Prostitutas – seguramente tendo os estigmas e preconceitos que sofreu em vida como os propulsores desta outorga popular.

É importante destacar que essas figuras não são meros “santos populares”, como costuma-se afirmar, porque não é a Igreja que confere a outorga divina a essas pessoas.

Quem “beatífica” esses personagens é o povo, que sofre comunitariamente as dores sentidas em seus desencarnes e, posteriormente, busca neles soluções dos problemas na vida dos vivos,  mas é  compreensível ouvir que essas pessoas são santidades, porque é inegável que são “santos e santas” dos bairros da cidade.

A atualidade do tema

O tema é tão abrangente que também é possível perceber questões muito atuais nessa conversa toda.

Há um debate inflamado sobre vacinas hoje em dia e muito frequentemente as mortes das crianças milagreiras são resultantes de doenças que podem – atualmente – ser evitadas com vacina. Podemos tomar como exemplo a meningite.

Igualmente, é possível identificar a incidência de muitas mulheres vítimas de violência – decorrentes de comportamentos que subjugam a mulher e resultam em várias espécies de violência.

Enfim, as revelações das histórias de milagreiros e milagreiras de cemitério transcendem em muito qualquer questão religiosa.

É importantíssimo fazer com que essas histórias sejam preservadas.

Os principais inimigos desse acervo patrimonial são o vilipêndio e o furto dos túmulos, a morte dos antigos devotos dos milagreiros e a aposentadoria dos antigos funcionários do cemitério, que são a memória viva dos ritos devocionais nas necrópoles.

Não gosto de imaginar o dia que se aposentarem Popó, Fininho e outros funcionários que detêm todos os saberes dos cemitérios de São Paulo.

Acredito que toda medida assecuratória a esse patrimônio protege pessoas e biografias que são guardadas nas Necrópoles.

E nunca é demais lembrar que a trama humana que costura a sociedade é feita de histórias notórias e de histórias menos conhecidas – nem por isso menos relevantes para o todo que compreende a comunidade, em aspectos históricos, sociais e patrimoniais.

Porque, como se sabe, morte de verdade é o esquecimento.

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