A Vida no Centro

Pantopolista paulistano

Ivam Cabral é múltiplo. Morador e apaixonado pelo centro da cidade, é ator, dramaturgo, cineasta, psicanalista e diretor da SP Escola de Teatro e da Cia. de Teatro Os Satyros. Publicou muitos livros, atuou em dezenas de países e recebeu prêmios no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos, em Cabo Verde, no Reino Unido e na Índia. Finalista ao Prêmio Jabuti em 2010, foi editado em Angola, Cuba, Finlândia, Portugal e Reino Unido; e teve textos seus traduzidos para o alemão, espanhol, inglês e sueco. A ideia desta coluna é falar sobre sociedade e cultura.

Curso de cuidador de idosos

“Eu percebo a sua confusão e prefiro não questioná-la. Afinal, de ausências eu também entendo. Além de minha mãe que esqueceu, tive amigos queridos que foram deslembrando”, escreve Ivam Cabral em seu novo texto no A Vida no Centro

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Tempo de leitura:5 minutos

Por Ivam Cabral
ivampsic@gmail.com

Estava passeando com o Chico e a Cacilda, meus cães mais lindos do mundo, quando passei em frente à igreja da Consolação. Ela estava ajoelhada diante da porta imponente do edifício. Faz anos que a vejo pela Praça Roosevelt. Sempre pelas bordas, nunca no centro da praça. Talvez por isso, toda vez presto atenção nela. Acho que ela não gosta de confusão e quer ficar sozinha. É uma mulher bonita e deve ter mais de 60 anos. Mas menos de 70, certamente. Seus cabelos estão todos esbranquiçados e ela se veste com alguma elegância, embora viva em situação de rua. Já tinha passado por ela quando a ouço chamar pelo meu nome. Eu me surpreendo.

— Você me chamou pelo meu nome?

— Tem algum mistério em chamar uma pessoa pelo seu nome?

— Nenhum. É que eu sempre quis saber o seu, mas nunca tive coragem de puxar conversa com você, sempre tão compenetrada.

— Eu gosto de ler, por isso quando você passa eu não dou muita atenção.

Além de elegante, é verdade, ela sempre está lendo ou escrevendo alguma coisa. Nunca a tinha visto rezando.

— E qual o seu nome?

Um silêncio sepulcral entre nós. Ela me olha fixamente nos olhos e, neste momento, Chico e Cacilda, que parecem ter se cansado de me esperar, estão caminhando em direção a um dos canteiros da praça onde as pessoas fazem cocô. Sim, ao lado da enorme e augusta seringueira, o pessoal em situação de rua improvisou um banheiro a céu aberto. Uma pena para a praça, um problemão para o poder público que precisa resolver isso com urgência, mas um direito desse pessoal que vive nas ruas, indiscutivelmente. Um perigo para mim, porque os meus pets adoram comer cocô de gente, e eu fico desesperado quando isso acontece, sempre em descuidos meus.

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Eu corro em direção aos bichos, enquanto ela continua a me olhar, vigilante. Coloco as guias nos dois e volto até ela, que mantém o olhar petrificado, quase sem piscar.

— Desculpe, mas eu tinha perguntado o seu nome.

Mais uma infinidade de silêncio. Eu estou desconcertado com seu olhar.

— Você vai ter que descobrir. Todo mundo aqui sabe o meu nome.

Rapidamente eu tento cruzar informações e chego à conclusão de que ela deve ter ouvido alguém me chamar pelo meu nome em uma das muitas vezes em que nos cruzamos.

— Tá bem, eu vou prestar mais atenção.

Ela esboça alguma expressão de alívio, mas não sorri.

— Eu te chamei porque queria saber a sua opinião.

— Pois, não. Se eu puder, farei com gosto.

— É uma opinião, não um conselho. Não gosto de aconselhamentos. O que você acha desse curso aí?

Ela aponta com os dedos para uma placa fixada numa das grades que cercam a igreja da Consolação, onde se lê: “Curso de cuidador de idosos – Informações na secretaria”.

Eu passo por ali muitas vezes e sempre vi a placa. Inclusive, maluco que sou, já havia pensado em fazer o tal curso.

— Vi você fotografando a placa, ela me informa.

— Verdade, eu pensei em fazer o curso, fotografei pra não esquecer. Acho importante pensarmos nos velhos.

— Depois que vi você tirando fotografias da placa, fiquei com vontade de pedir informações sobre o curso. Mas acho que não me aceitariam.  

Enquanto ela vai falando, eu também penso em sua dificuldade. Tento ser gentil:

— Se você quiser, vou lá na secretaria com você.

— Eu vou pensar mais um pouco. Não gosto de me comprometer com coisas que, depois, não tenha condições de realizar.

Eu preciso me despedir dela, estou atrasado para um compromisso na SP Escola de Teatro.

— Fiquei com vontade de falar mais com você, mas agora estou atrasado.

— O problema é que não sei quando eu volto. Sou assim. Um dia me lembro de tudo e consigo conversar e até pensar no futuro. Mas só de vez em quando. Olhe só a minha cabeça, já não me lembro mais que seu nome é Ivam.

Eu percebo a sua confusão e prefiro não questioná-la. Afinal, de ausências eu também entendo. Além de minha mãe que esqueceu, tive amigos queridos que foram deslembrando. Arrisco uma possibilidade:

— Então quando você voltar a gente conversa mais.

— Combinado.

Nos despedidos com um aceno e vou pensando.

Ela está pela praça Roosevelt há muito tempo, mais de cinco anos, certeza que mais tempo do que isso. E eu nunca havia falado com ela. Um misto de sentimento de culpa, pensando que se tivéssemos nos encontrado há mais tempo, talvez tivéssemos conseguido retardar esquecimentos e futuros. Afinal ela nunca me passou desapercebida. Inclusive cheguei a falar com várias pessoas sobre sua elegância e jeito de se portar no mundo, sempre dormindo em lugares movimentados, evitando tanto a solidão quanto a muvuca do miolo da praça.

Enquanto caminho vou pensando nesse tempo todo que nos conhecemos e no tempo dos nossos esquecimentos e silêncios de anos, muitos anos.

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