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Com atores trans, refugiados e egressos do sistema prisional, nova peça dos Satyros é um manifesto artístico que nos ensina muito sobre o Brasil do ódio e as contradições da sociedade contemporânea
Por Clayton Melo
Temos a arte para que a verdade não nos destrua.
Me lembrei dessa frase de Nietzsche ainda no teatro, pouco depois de assistir ao novo espetáculo d´Os Satyros, “O Incrível Mundo dos Baldios”, na Praça Roosevelt (clique para saber mais).
Perturbadora e poderosa, a peça é capaz de dar porrada e ao mesmo tempo se valer da poesia e da sutileza para expressar angústias, dores e urgências do mundo contemporâneo. Na minha modestíssima opinião, partindo de uma visão muito pessoal, o novo trabalho dos Satyros é a mais completa tradução da frase de Nietzsche.
Esse mundo em que a gente vive não é moleza. Nunca foi, mas cada época tem suas próprias pancadas e desafios. E a arte, com suas raízes profundas, nos fortalece para lidar com a crueza da vida e amplia a compreensão do mundo ao nosso redor.
Feridas do nosso tempo
O que Rodolfo García Vásquez e Ivam Cabral fazem no novo trabalho – assim como em outros – é tocar nas feridas no nosso tempo. Assim, eles iluminam a travessia para que, se não der para torná-la menos dolorosa, que pelo menos seja possível estabelecer pontes que permitam o diálogo, a tolerância e o respeito.
No caso, a ferida exposta é a roda capitalista que exclui multidões – os baldios do título da peça, os grupos sociais que têm dificuldade de inserção na força econômica e social. São os marginalizados, como idosos, transexuais, negros, ex-detentos, refugiados e miseráveis, aqueles que durante muito tempo foram forçados a se calar e que agora lutam para serem ouvidos. São os deslocados da ordem mundial, as vidas desperdiçadas de que fala Bauman.
No sentido português, como nos explicam Os Satyros, os “baldios” também são os terrenos comunitários de vilas no interior, espaços utilizados para atividades comunitárias, como celebrações, hortas, festas e eventos culturais. Os baldios portugueses eram os ambientes do convívio social, da troca simbólica e cultural, do prazer da coletividade.
“A combinação entre os dois significados está na base da peça. Os Satyros buscam fazer das suas ações na Praça Roosevelt um grande baldio, onde os mais diversos grupos sociais, vindos dos mais diversos pontos da cidade, podem se sentir acolhidos e o convívio social possa ser enriquecedor e respeitoso”, diz o texto do programa da peça.
Praça Roosevelt no centro
A riqueza e o legado do trabalho desenvolvido pelos Satyros desde sua fundação, em 1989, vêm da combinação da investigação teatral com a postura de ator social que intervém na comunidade em que atua – no caso, o Centro de São Paulo, mais especificamente a Praça Roosevelt e seu entorno.
Basta relembrar a história de como era a Roosevelt quando o grupo chegou ao local, no ano 2000, e como é agora, passados 18 anos. Antes, uma região perigosa, com bandidos, traficantes e o comércio do sexo rolando solto. Era barra pesada. Hoje, uma área vibrante, onde convivem moradores com seus cachorros, skatistas, crianças, artistas de rua, a comunidade LGBT, hipsters e jovens da periferia.
Pois os Satyros vieram para um ambiente até então hostil acreditando que seriam capazes de, com cultura e diálogo, transformar o local, como já tinham feito no teatro que montaram em Lisboa, quando trabalharam na Europa. “Queríamos colocar em prática a tese de que seríamos capazes de transformar um espaço”, disse numa entrevista ao A Vida no Centro o ator, diretor e dramaturgo Ivam Cabral, cofundador dos Satyros ao lado de Rodolfo.
A chegada à então detonada Praça Roosevelt aprofundou o interesse da companhia por abordar as questões dos grupos sociais marginalizados, transformando-os em temas e parceiros da investigação teatral.
Assim, depois de pouco mais de dois anos na região, a trupe dos Satyros começou a incorporar, em diferentes funções – inclusive no palco -, travestis, traficantes, ex-presidiários e adolescentes em situação de risco.
Em 2016, por exemplo, o grupo produziu o espetáculo “Haiti Somos Nós”, composto por um elenco de 20 refugiados haitianos. Desde então, vários haitianos trabalham com o coletivo.
Brasil do ódio
A intolerância, a violência contra a mulher e outros descalabros do Brasil de hoje, assim como a luta dos transgêneros e demais grupos que buscam afirmar sua identidade, levaram os Satyros a desenvolver um projeto que discutisse todas essas questões – e disso resulta “O Incrível Mundo dos Baldios”.
A pesquisa do elenco foi desenvolvida durante sete meses e partiu da biografia dos atores. A peça tem uma refugiada palestina recém-chegada ao país, um ator idoso morador do Palacete dos Artistas, um egresso do sistema prisional e outro da Fundação Casa e uma transexual, entre outros exemplos.
A interpretação da atriz Oula al-Saghir, a refugiada palestina que chegou ao Brasil fugida da guerra, é de uma verdade dilacerante. Ela veio para cá com o marido e um filho pequeno, sem dinheiro, em busca de uma vida melhor. E aqui começou primeiro uma carreira de cantora e, agora, pelas mãos dos Satyros, também a de atriz. Foi o trecho da peça que mais me fez chorar.
De histórias como a de Oula nasceu um espetáculo que faz rir e chorar, sem pieguices e o palavrório tão comum a uma época de militâncias inflamadas e chavões políticos. Não tem panfleto. É arte. “O Incrível Mundo dos Baldios” é um manifesto artístico que nos ensina muito sobre o Brasil do ódio e as contradições da sociedade contemporânea.
Vá ver. Você vai refletir, rir e chorar – assim como eu.
Pastilhas estão sendo retiradas e serão trocadas por outras semelhantes, segundo nota oficial da Prefeitura de São Paulo.
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