Viaduto Santa Efigênia passa por reforma. Prefeitura diz que vai manter desenho do mosaico do piso
Pastilhas estão sendo retiradas e serão trocadas por outras semelhantes, segundo nota oficial da Prefeitura de São Paulo.
O ator, diretor e dramaturgo Ivam Cabral conta como a arte foi decisiva na recuperação da Praça Roosevelt, antes um local degradado e hoje uma praça aberta e democrática. Confira a entrevista
[EDIT: atualizado em 5/7/2019]
Por Denize Bacoccina e Clayton Melo
No fim dos anos 1990, depois de uma temporada de sete anos na Europa, a Cia de Teatro Os Satyros escolheu a Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo, como sua nova sede. O local em nada lembrava o point vibrante de hoje, onde convivem moradores com seus cachorros, skatistas, crianças, artistas de rua, hipsters e jovens da periferia. Na época era uma rua escura, ponto de prostitutas e michês, também nada parecido com o reduto da boemia que havia sido nos anos 1950 e 1960, local histórico da Bossa Nova em São Paulo, onde cantavam ícones como Johnnie Alf, Dick Farney e Alaíde Costa e onde Elis Regina fez sua primeira apresentação na cidade.
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Pois Os Satyros acreditavam que seriam capazes de, com cultura e diálogo, transformar o local, como já tinham feito no teatro que montaram em Lisboa, no período europeu. “Queríamos colocar em prática a tese de que seríamos capazes de transformar um espaço”, diz nesta entrevista exclusiva ao A Vida no Centro o ator, diretor e dramaturgo Ivam Cabral, cofundador dos Satyros ao lado de Rodolfo García Vázquez e diretor executivo da SP Escola de Teatro, projeto que idealizou junto com outros artistas e coletivos.
Agora, no ano em que os Satyros completam 30 anos de fundação, a companhia apresenta um novo espetáculo, “Mississipi”, que tem a Praça Roosevelt como território. Em cartaz no teatro dos Satyros, a peça se passa em três momentos (1999, 2009 e 2019). O texto é inspirado em uma série de situações vividas ou observadas pelos integrantes do grupo teatral no local.
A peça tem personagens que formam um mosaico das relações não só da Roosevelt mas também do próprio Brasil de 2019, como pessoas em situação de rua, os que querem o desaparecimento dessas pessoas, moradores dos apartamentos da praça, polícia. Assim, os Satyros usam a Roosevelt como uma alegoria para os acontecimentos políticos e sociais que vêm marcando o país nos últimos anos.
Paralelamente, Ivam e Rodolfo também se preparam para a reabrir o Cine Bijou, espaço que formou gerações de cinéfilos desde os anos 1960 na Praça Roosevelt. A reabertura está prevista para os próximos meses, com uma programação de filmes de arte e mostras de clássicos do cinema.
Nesta entrevista, Ivam conta como era a praça quando Os Satyros chegaram e também fala das ameaças vividas pela cultura atualmente.
A Vida no Centro – Mississipi, a nova peça dos Satyros, fala sobre a Praça Roosevelt. Como você vê a praça hoje?
Ivam Cabral – A Roosevelt é, hoje, a ágora legítima da cidade. Tudo começa ou termina nela. Das pequenas às grandes ideias da cidade, tudo passa por aqui. A Roosevelt reflete exatamente a sociedade e a vida paulistanas; com seus problemas, inclusive. E é um oásis na vida e na rotina dos paulistanos. Porque é um lugar que nunca vai te deixar sozinho. É lindo ver que o paulistano se apropriou, legitimamente, da Praça Roosevelt.
A cultura está sob ataque atualmente. Como você avalia esse momento?
Talvez seja o momento mais difícil da cultura em todos os tempos. Porque, depois de tantas lutas, pensávamos que as conquistas da cultura haviam se sedimentado. Doce ilusão. A impressão que dá é que teremos que construir tudo novamente, do zero. Prevemos isso, infelizmente. Quando pensamos em retomar o Cine Bijou na Praça, foi com esse desafio. A ideia é montar o nosso bunker de resistência. Para que o futuro seja mais leve, para que haja um fio de esperança, ao menos.
Como os Satyros vieram parar na Praça Roosevelt? Como foi a ocupação desse espaço?
Fundamos os Satyros em 1989 e descobrimos, logo no início, que ter um espaço faria toda a diferença. Nossa primeira sede foi na Major Diogo, a rua do TBC. E num momento em que a Major Diogo, que tinha sido uma rua importante para o teatro, vivia uma decadência. O viaduto da Jaceguai tinha moradores de rua embaixo, era escuro. Então a gente chegou para trabalhar num lugar onde as pessoas não tinham mais coragem de ir. A gente era muito jovem. Ficamos lá dois anos e meio e fomos convidados a trabalhar na Europa. Os Satyros ficaram sete anos na Europa. Tivemos sede em Lisboa e em Berlim e estivemos em mais de 20 países. Quando estávamos em Lisboa, ficamos sabendo que o bar da frente tinha fechado e a padaria também. Depois da nossa saída aquele lugar tinha decaído. Sempre trabalhamos a questão do entorno – e também sempre fomos muitos. Em Lisboa, quando fomos procurar espaços, encontramos um lugar em Xabregas, onde hoje é Oriente e onde aconteceu a Expo. Mas nessa época, em 1993, a região estava abandonada. Estreamos nosso espetáculo no Teatro Ibérico, espaço que rapidamente se tornou conhecido na cidade. O grupo Madredeus surgiu lá. O primeiro disco deles foi gravado ali, nesse período. Naquele momento, sentimos que o teatro era mobilizador, transformador. Tivemos provas disso. A gente não tinha lido em nenhum lugar sobre o processo de transformação através da arte. Primeiro vivemos isso e depois fomos estudar. E, ao voltar para São Paulo, no final dos anos 1990, a gente só pensava no centro.
Por quê?
Porque queríamos colocar em prática a tese de que seríamos capazes de transformar um espaço. Localizamos esse espaço no fim de 1999 e, um ano depois, a gente se mudou para cá. Naquela época, quem descia na estação República e morava nos prédios do fim da rua não vinha por aqui, dava a volta pela Rua Nestor Pestana. Aqui era escuro por causa das árvores. Tinha pequenos traficantes, prostituição, de homens e mulheres, também muitos travestis e transexuais. Eles quebravam as lâmpadas da rua. A gente ligava para a Eletropaulo, que fazia a reposição, mas aí quebravam de novo. Mas teve uma coisa bacana: a gente quis conversar com esse pessoal. Inclusive temos pessoas daquela época trabalhando com a gente até hoje. E desse período uma frase que aprendemos intuitivamente: “Qual é o seu nome?” A pessoa nunca diz o nome, ela começa a conversar. A gente começou a ficar amigo do pessoal.
Vocês não tinham medo?
Eles ficavam sentados numa muretinha bem em frente aos Satyros e de lá ameaçavam a gente. Tinha um bueiro onde eles guardavam as coisas deles, tanto drogas quando coisas pessoais. No começo foi difícil: a gente recebeu ameaças de morte.
E o público vinha assistir às peças?
Quando chegamos, estabelecemos um prazo de cinco anos para essa transformação. No final do segundo já tínhamos modificado muita coisa. O público frequentava, foi corajoso também. Tinha muito jovem e intelectual. O divisor de águas foi em 2003. Me lembro de um artigo do Contardo Calligaris, na coluna dele na Folha, que ajudou a marcar essa mudança. Ele escreveu sobre um espetáculo nosso e aquilo atraiu um público mais amplo. Nosso ingresso era muito barato, e até hoje é. Para quem é morador da Roosevelt, custa só R$ 5,00. São 18 anos e tudo o que a gente não pode reclamar é de público.
Além do espaço dos Satyros, o que mais havia na Praça Roosevelt naquela época?
Onde hoje é o La Barca, um dos bares na Roosevelt, havia uma casa gay que tinha self-service de michês. Imagina quem frequentava esse lugar…Havia três ou quatro meninos ali e chegava um senhor. O cliente podia ficar com todos os meninos. Onde atualmente é um pet shop era um bar de travestis e lésbicas, muito barra pesada e que toda noite caia na baixaria. Só existiam esses dois lugares abertos. Onde é o Parlapatões tinha uma padaria 24 horas e onde está um supermercado era, antes a Baiúca (reduto da Bossa Nova nos anos 1950 e 1960), que quando a gente chegou tinha virado um restaurante self-service mas ainda tinha um piano branco em que todo mundo tocou. A gente vê isso nos livros sobre Bossa Nova. Em outro lugar, no Espetinho, ficava o Corsário, um bar gay. Mas quando a gente chegou só tinha o bar das travestis e o dos michês. A padaria tinha fechado porque tinha tido uma chacina – o filho do dono matou várias pessoas numa noite. No Corsário teve a morte de duas travestis numa noite. Entramos no meio de um fogo cruzado, tinha muito suicídio nessa época. As pessoas se jogavam dos prédios. Era uma loucura. Depois do artigo do Contardo, vimos pela primeira pela vez uma BMW por aqui, uns carrões.
Então o ano de 2003 foi um marco. Como foi a partir daí?
A partir daí passamos a ter mais público. As pessoas sabiam sobre nós. Elas vinham, mesmo correndo riscos. Mas aí já tínhamos o pessoal da rua do nosso lado, ainda que tenhamos, de certa forma, expulsado o pessoal ao trazer luz para esse lugar. Havia dois prédios inteiros de travestis. O Parador, em cima dos Satyros, que ainda era flat e elas alugavam pra transar, e um outro. E daí a gente passou a ter público. Acho que quem salvou a praça foi esse público.
E como as coisas evoluíram até que a Praça Roosevelt fosse reformada?
Começou com o Gilberto Dimenstein, que lançou em 2004 um livro chamado Mistério das Bolas de Gude, em que ele aborda o processo de transformação das cidades pela arte e fala da nossa experiência. Para o lançamento desse livro, organizamos um evento no Satyros e chamamos várias pessoas que moravam na praça. Naquela mesma época, começamos a ter um público muito grande vindo do Jardim Pantanal. Dávamos desconto, ingresso de graça. Trouxemos mais de mil pessoas de lá. No dia do lançamento do livro, o (José) Serra, prefeito da cidade na época e a comitiva dele, com vários secretários, assistiu a este trabalho do Dimenstein, fica sabendo da Praça Roosevelt e começa a frequentar. O Serra fica curioso, a gente conta do trabalho que a gente faz no Jardim Pantanal, ele pergunta se tem mercado. Uns dias depois ele me chama para uma reunião na Prefeitura e esta altura já pesquisou tudo sobre a economia criativa e propõe a criação da SP Escola de Teatro. A ideia é do Serra. Ele que propõe. E a gente já imaginou que este convite não era para os Satyros. Era para ser uma coisa coletiva. E aí começamos a pensar nas melhores pessoas para cada coisa e foi assim que surgiu. E a escola é inaugurada em 2010. Hoje a escola é reconhecida, ganhou muitos prêmios. Tem um respeito. A chegada dos Parlapatões é de 2006. Aí ninguém segurou mais. Os bares todos são de 2012 para cá, com a reforma da praça.
Vocês vieram pra cá, fizeram a praça ressurgir, deixando de ser um lugar perigoso para se transformar no que é hoje, um lugar mais seguro e frequentado. Como você vê essa resistência de parte dos moradores a esse perfil mais boêmio da praça?
Fico triste porque foi um processo muito coletivo, construído muito mais pelo cidadão, que veio até a Praça Roosevelt e rompeu todo um estigma, com esse medo de não andar no centro, que é uma coisa que vem da ditadura, lá dos anos 1970, quando falaram que essas calçadas não eram nossas, que a gente não podia caminhar por esses lugares. Eu acho que a grande revolução da Praça Roosevelt foi colocar uma mesinha na calçada e falar: venham conversar com a gente.
E ainda há quem queira reprimir isso.
Totalmente. Mas, se por um lado eu me entristeço, por outro fico feliz de ver que a gente conseguiu garantir que os skatistas continuassem na praça. Eles foram fundamentais na mudança, porque não abandonaram a praça. Eles são anteriores, desde os anos 1960. Muitos campões mundiais saíram daqui.
Você vê risco de reversão da tendência de praça aberta?
Nós, artistas, somos os lixeiros da sociedade. A gente limpa toda a zona, a sujeira de todo mundo e não vamos ser convidados para a festa. Então acho muito possível, sim. Não são acontecimentos isolados isso que vimos no MAM, no Queer Museu, no castelinho no Botafogo, no Rio, a transexual em Porto Alegre que não pôde fazer a peça. E tem muito mais casos que a gente não fica sabendo. É uma onda reacionária, uma onda muito forte de pessoas que começa a tomar à força o protagonismo. Essas pessoas querem o reconhecimento por isso. Eu não me assusto se chegar aqui amanhã e encontrar a praça cercada.
Por outro lado, todos esses fatos não aconteceram em silêncio, houve grita. Na medição de forças, quem vai ganhar?
Não vai ser tão fácil para eles. Não somos resignados. Se encontrar a praça fechada, não vou cruzar os braços. Vamos medir forças. E aí acho que eles perdem, porque não têm argumentos.
Você está no centro desde quando? O que você gosta de fazer?
Desde sempre. Amo o centro. Eu morei na Avenida São Luiz antes e agora estou na Augusta com a Praça Roosevelt. Quando vim pra cá, em 2000, todo mundo dizia que eu era louco.
“Revitalização” é uma palavra que a gente ouve bastante por aí quando o assunto é o Centro, mas muitos não param para pensar no que ela realmente quer dizer. O que você acha dessa palavra?
Eu não gosto. Acho besta. Acho higienista, feia. Estou aqui antes da “revitalização”. E parece também que você vai ter, na revitalização, um papel fundamental. Se você pensa no coletivo não existe revitalização. Eu ando no Centro pra caramba. Tenho cachorro, ando muito com ele. Olho muito pra cima. Sair às seis da tarde pegar uma bicicleta, passar pelo viaduto do Chá, pela Faculdade de Direito, as rodas de samba, o movimento de paquera, as pessoas que estão por ali. E pode fazer isso a pé também. É agradável. É muito seguro. Você não vai ter nenhum problema, vai fazer exercício e vai viver uma coisa que essas pessoas que ficam dentro do seu apartamento reclamando do barulho não fazem, que é viver a cidade de verdade. E tem pra todo mundo, desde o lugar em que você vai sentar e tomar um café muito tranquilamente até um sambão para se esbaldar caso queira – sem gastar dinheiro nem precisar fazer muito esforço. Eu acho sensacional. Isso sem falar nos restaurantes que você encontra.
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