A Vida no Centro

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Crônica: Na Casa das Rosas, entre a Avenida e a Alameda

A escritora Leda Rezende fala sobre sua relação com a Casa das Rosas, um casarão dos anos 1930 que hoje é um espaço cultural

Nesta crônica, Leda Rezende fala sobre sua relação com a Casa das Rosas, espaço cultural na Avenida Paulista que agora passa por uma restauração

Leda Rezende

Lembro-me da primeira vez que vi a casa. Foi logo depois que me mudei para cá. Estava mal tratada na época. A casa, não eu. Estava solitária na época. Eu, não a casa.

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O nome era lindo. Até porque foi a primeira vez que encontrei uma casa com nome. Maravilhoso. Dava até para sentir cheiros e cores. Só pelo nome. Em meio àquele contorno que a sombreava, de tantos e tantos prédios, ela ali ficava. Linda. Com seu jardim em volta. Insistindo em sua beleza muito mais que acatando as ordens da redondeza.

Não lembro um só dia que por ali passasse e não ficasse olhando. Igual uma vitrine. Com a porta de acesso fechada.  Imaginava como teria sido a rotina dos seus moradores. Onde ficavam durante a noite. Se passeavam entre as árvores. Se choravam as possíveis tristezas nos banquinhos entre as flores. Se riam, descontraídos, em dias de festa. Li sobre a história da casa. Nesta época vivia eu à cata de histórias. Até porque, recém imigrante, estava tentando construir a minha nova história por sobre a antiga.  Co-autora de mim mesma.

Li que a casa fora habitada até 1986. Fiquei me colocando em paralelo, sabe-se lá por que. Tentei me lembrar o que eu fazia e onde estava quando a casa ficou vazia. Quando móveis e pessoas de lá saíram.

Ao contrário do que acontece com o passar do tempo, sob este contexto, nada foi envelhecendo. Nem as minhas idéias, nem a casa.

Ela, sendo restaurada. Acompanhei a placa de aviso na entrada. Os andaimes em frente à fachada. O entrar e sair de materiais de reforma. O jardim meio que escondido sob estes tais materiais. Eu, arrumando e acrescentando o novo em meu currículo. Com igual apuro que os trabalhadores arrumavam os muros, tetos e pisos na casa. As duas ganhando sua nova roupagem. Mas mantendo sua estrutura inicial. Para se manter fiel aos projetos não é preciso esconder o que se construiu. Nem destruir o que um dia foi planejado. É preciso conservar para poder revelar. Expor. Avivando cores. Retirando os detalhes sem conserto. Preservando acessos de subida e descida. Possibilitando que novos percursos sejam ali visualizados. Assim estávamos as duas. A casa e eu com um mesmo objetivo. Nos resgatando.

Muito tempo depois, a casa já reformada, li que ela abrigaria uma atividade cultural que muito me agrada. Fui. Sozinha. O portão estava semi-aberto. A atividade seria apresentada em dois salões principais do andar térreo. Fui até a entrada dos salões. Ainda não estava aberto ao público. Como de hábito, olhei de fora. Ainda estava olhando o mundo desta forma. Uma espiadinha. Mas vi que as luzes estavam acesas. Voltei para o jardim. De repente escutei uma voz que, me pareceu, se dirigia a mim. Tentei identificar de onde vinha o chamado. Era de uma porta da lateral. Uma mocinha me perguntava se eu queria entrar e conhecer a casa. Avisou que poderia entrar, mas só pelos fundos, ver os quartos, mas pela frente não. Por causa do tal evento. Não entrei.

Igual a casa com o portão entreaberto eu também ainda guardava uma certa timidez. Ou uma certa temeridade. Igual a casa, me expunha ainda com certa insegurança. Nunca tudo de uma vez. Se a reforma fora longa – a da casa, a minha estava em fase de expansão. Nem tudo podia ser abraçado de uma vez. A vida sempre nos ensina uma certa parcimônia.

Aguardei o evento. Atrasou. Não pude mais ficar. Já era noite. E sai. Não antes sem dar uma olhadinha para trás. Como um até breve – para uma amiga próxima.

Difícil escapar da questão do tempo. Ou quantificar com exatidão. Passados tantos anos depois desse primeiro semi-acesso me vi diante da possibilidade real de lá visitar. A casa. E pela porta da frente. Durante o dia. Era um sábado. Na idéia de atravessar da avenida para a alameda, lá estava nos jardins da casa. Não sei quem se surpreendeu mais.

A esta altura minha vida se tornara mais de cá do que de lá. Duas surpresas me fizeram esta demonstração. Houve uma época de severo anonimato. Até que um dia, na escada do metrô escutei meu nome. Alguém passava e me chamava. Para um aceno. Para me dar um Lugar. Já podia ser reconhecida. A segunda surpresa veio logo depois desta. Num espaço de shows. Lotado. De pé aguardando o início, de novo escuto meu nome. Ela queria dizer do prazer de me rever. A partir daí me senti fazendo parte.

Assim também estava a casa. Neste dia da travessia, digamos assim, ela estava plena. De pessoas. Tinha uma feirinha de livros nos jardins. Gente que expunha. Gente que acreditava. Gente que oferecia. Gente que agradecia. Estava toda aberta. Muitas pessoas circulavam por todos os ambientes.

Decidi de um impulso só. Me aproximei da entrada. Pela porta da frente. Estava toda aberta. Entrei. Conheci as salas. Subi pela linda escada. Conheci os quartos. No quarto de trás – um lindo terraço. Pude até escutar as vozes e o tilintar de xícaras. Devia ser ali que tomavam o café da manhã. Ou tomavam um pouco de sol nos dias mais frios.

Desta vez quando sai não olhei para trás. Para um aceno. Me despedi tocando numa das paredes de dentro da casa. Senti a parede quente.

Diz aquele autor que tanto admiro, que o destino vem por trás. Não sei se concordo. Pode ser que venha ao lado. Numa paralela. Assintótica ou não. Destino é coisa de destino. Prescinde de saúde, engenharia ou arquitetura.

Surgiu um convite. O convite mais surpreendente que poderia ter imaginado. Desde o início. Desde a primeira olhada na casa. Mesmo depois do segundo reconhecimento na cidade.

Haveria uma coletânea. Uma edição especial. Um grupo da mesma área profissional.  Textos de cada um dos convidados seriam impressos e publicados num mesmo volume. Todos colocando seus escritos numa condensação. Uma exposição de si pela via que se sentisse mais confortavelmente exposto.

Fui incluída. Convidada. Participaria da edição. E me avisaram do local do lançamento. Seria na casa. Na casa. Repeti isso para mim. Várias vezes. Parecia uma ficção. Científica por certo, haja visto a qualificação dos participantes e convocados.

A esta altura a casa já era um centro cultural reconhecido. Onde as idéias circulavam sem tanto recato.  Entrava agora para uma nova etapa. Com mais segurança. Já não sei se me refiro a ela. Ou a mim. Porque também já estava me sentindo com menos temor e recato diante das alternativas por onde caminhar.

Antecipei a visão. Do dia. Da festa. Da distribuição. Compartilhando tudo com a casa. Já fui logo me fazendo parte de um pedacinho da história. Que eu acompanhei. De longe. De mais perto. De dentro. E agora, integrante. Desta história. Eu da dela. Ela da minha. Como se muros, lustres, artérias e veias pudessem compor um só destino.

Não teria Lugar mais especial e nome mais adequado para que este meu passo se definisse e se incorporasse a esta mais nova “reforma”.

Com o passar do tempo continuamos nos equiparando. Já olhamos o mundo de dentro para fora. E deixamos que o mundo nos olhasse.

Tiramos os nossos tapumes. E enfrentamos, adequadas, as avenidas e alamedas. Ela com seus novos visitantes. E reformada. Não mais mal tratada. Eu com meus novos amigos. Já integrada. Não mais solitária.

Percursos tão distintos – se igualando.

A cada leitura que alguém se disponha a fazer neste conjunto editado, o que é hoje e aqui, será sempre renovado. E em parceria eterna com a Casa das Rosas.

Leda Rezende é médica, psicanalista e escritora, com 11 livros publicados. É brasileira e atualmente mora em Milão.

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