A Vida no Centro

CalçadaSP

Wans Spiess e Tony Nyenhuis são publicitários e criadores do CalçadaSP, iniciativa de ativismo urbano com olhar artístico. Aqui, eles usam as calçadas do centro para caminhar sobre diferentes temas da região mais pulsante da cidade.

Crônica do por aí, um dia de Centro

Para o aniversário de São Paulo, o CalçadaSP escreve sobre um centro de antes da pandemia, quando ainda se podia andar tranquilamente por aí

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Por Tony Nyenhuis

Logo depois da Liberdade, o sinal sonoro. O alto-falante anuncia “Estação Sé” (não lembro se tinha um “da” entre as duas palavras). A voz, feminina e um tanto quanto impessoal, informa ainda o lado do desembarque (não lembro se esquerdo ou direito) e que na estação se pode acessar a Linha Vermelha. 

Parece que faz tanto tempo. As pessoas se agitam quando chega a Sé. Levantam e tentam ficar o mais próximo possível da porta. Antes, essa aglomeração não causava pavor, só um natural incômodo. O trem entra como foguete na plataforma e meio que vai fazendo uma curva aberta, onde se avista a plataforma apinhada de gente. Entre uma bufada e outra começa a diminuir a velocidade, até parar. Estridente sinal sonoro e a porta se abre. Desço, ou descia, por tabela junto da multidão. O vagão se esvazia num estalo, para encher de novo num piscar de olhos assim que a outra porta se abre. 

A praça da Sé

O metrô some pelo túnel e as pessoas seguem apressadas. Pego o rumo da catraca de saída e quando vejo estou subindo a escada rolante. De repente, a Praça da Sé! É impossível ficar indiferente. Misto de sensações. Há pouco, estava debaixo da terra e agora… Subitamente, lembro-me dos livros do Roberto Pompeu de Toledo. Aconteceu tanta, mas tanta coisa aqui. Lembro quando era criança a tevê passar os discursos inflamados das “Diretas Já!”. Mar de gente exigindo eleições livres e o fim dos “anos de chumbo”. Alguém me traz ao século 21 ao pedir moedas para comprar um lanche. 

Entre pastores que pregam a pequenos grupos, turistas e policiais, sigo na passada rápida típica do paulistano. Não antes sem contemplar a majestosa Catedral. Fiquei maravilhado ao descobrir, no passado, estar numa cripta da catedral os restos mortais do Cacique Tibiriçá. Acho que poucos pensam nisso. São Paulo, maior cidade do país, metrópole colossal, talvez seja a única capital brasileira em que sua história esteja totalmente entrelaçada aos índios. Quase esquecidos. Cesso a passada e olho ao redor a imaginar a praça como mata virgem e eles para lá e para cá. Tal qual como era. A região toda. Na última olhada, antes de prosseguir, vejo o Marco Zero. Lembro-me de gravar ali uma matéria do CalçadaSP para a TV Globo. Foi tão legal. 

Largo de São Francisco

Da faixa de pedestres, tomo a Rua Benjamin Constant (acesso o Wikipédia para lembrar quem foi Constant, mas não vem ao caso). Para variar, antecipei-me e vou chegar antes da hora marcada. Paro num estabelecimento, meio boteco, meio café, meio restaurante, e tomo um suco de laranja gelado. Faço hora vendo as manchetes de jornais numa banca percebo ali, nas proximidades, um próspero comércio de cabelos e perucas. Além dos tradicionais compradores e vendedores de ouro, com inconfundíveis placas. Saudades de observar o dia a dia que faz São Paulo ser tão interessante. O centro da cidade, principalmente. Centro velho, em particular. 

Olho o relógio, hora de seguir. Continuo pela Benjamin Constant e logo estou no Largo de São Francisco. Até difícil imaginar tudo o que já aconteceu aqui. O primeiro volume do Roberto Pompeu de Toledo, “A capital da solidão”, nos leva a conhecer desde seus primórdios. Antes da instalação da Faculdade de Direito. Quando vim do interior tentar a vida na capital, tirei um dia para conhecer a famosíssima faculdade. Onde estudou um monte de presidentes da República, ministros de Estado, importantes autoridades, os mais prestigiados advogados além, claro, de juízes e desembargadores. Sem falar das inúmeras personalidades da vida cultural brasileira (constelação absurda de talentos).

Edifício Planalto

Sigo pela Cristóvão Colombo (ele sei quem é), passo por cima do Corredor Norte-Sul, até pegar a Avenida Maria Paula. Belíssima avenida, árvores, gostosa de andar. Alguns metros (200, 300?) à frente a obra-prima do Artacho Jurado (uma delas, na verdade). Ícone não só da arquitetura paulistana, o Edifício Planalto é também um dos ícones da cidade de São Paulo. Boto o dedo no interfone, o porteiro me conhece e abre a porta com outro botão. Pega o interfone e avisa a Wans que o senhor (senhor está no céu, digo) Tony chegou. Chamo o elevador, aperto o “6”, chego no andar e a porta está aberta. “Vou fazer um café”, escuto da cozinha.

A reunião, por minha vontade, precisa (ou precisava) começar pelo agravamento do quadro político do país. Olha que faz tempo e ainda não chegamos no limite. Depois da resenha das últimas declarações do presidente, enfim a conversa engrena ao que me trouxe até o Planalto. Fazemos mil planos e traçamos os próximos passos do nosso CalçadaSP. Hoje (aquele dia) especialmente animados acertamos os últimos detalhes de uma exposição para homenagear a dona Mirthes Bernardes, criadora do famoso e genial desenho do “piso paulista”, símbolo de São Paulo. O projeto ficou lindo, temos um potencial patrocinador. “A gente precisa fazer essa exposição com a Mirthes viva”, exclamamos. Ainda não sabíamos, mas não conseguiríamos homenageá-la em vida.

Mostro para a Wans uma foto que fiz na calçada do Largo de São Francisco. Uma arca do tempo, do Centro Acadêmico Xl de Agosto. Pelo que entendi, explico, esta “Arca do Centenário” foi enterrada em 2003. Como estará São Paulo em 2103, quando ela será desenterrada? E o Brasil? E o mundo? Fazemos exercícios de imaginação, acertamos alguns detalhes e assuntos, e fim de reunião. Nos despedimos, tenho de correr para chegar à Avenida Paulista, outra saudade do tamanho de Essepê. 

Por motivos alheios à minha vontade, atravesso a quarentena da pandemia no litoral. Ainda não vi a cidade e o centro que amo tão diferente. Tão pouco vibrante. Tão triste, dizem os amigos. Não é para menos. Lamento pelos bares e restaurantes que gostava de ir e foram fechados. Desolador. Mas, por outro lado, não tenho nenhuma dúvida sobre a capacidade de São Paulo de voltar a ser São Paulo. Otimista que sou, até me arrisco a dizer que pode ser um lugar melhor. A população tem descoberto o prazer de caminhar, as vendas de bicicleta crescem, vemos a valorização do comércio de bairro, gestos de empatia e de solidariedade. Eu sempre vou acreditar em São Paulo. Tomara que a gente possa se ver logo. Feliz aniversário.

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