A Vida no Centro

CalçadaSP

Wans Spiess e Tony Nyenhuis são publicitários e criadores do CalçadaSP, iniciativa de ativismo urbano com olhar artístico. Aqui, eles usam as calçadas do centro para caminhar sobre diferentes temas da região mais pulsante da cidade.

Receitas de arte contra o Covid-19

A rua também dá o seu recado quando a orientação é #fiqueemcasa. Veja exemplos de manifestações artísticas contra o coronavírus

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“A CIDADE NÃO ESTÁ VAZIA. ESTÁ CHEIA DE AMOR AO PRÓXIMO, #FIQUEEMCASA” Foto: A Vida No Centro

Quem olha da janela dos apartamentos que circundam a praça Roosevelt recebe a mensagem clara: “A cidade não está vazia. Está cheia de amor ao próximo”. Mesmo quem adora ver a praça cheia de gente, sabe que agora não é hora de frequentá-la. Durante a quarentena, declarada por conta da pandemia do novo Covid-19, o direcionamento é #fiqueemcasa.

Foi o incômodo de ver as ruas vazias do alto do décimo andar do prédio onde mora na Consolação que levou o produtor gráfico Victor Ghiraldini a propor o projeto Ruas do Bem. Ele faz parte de um grupo de 15 paulistanos (12 atuando externamente e 3 reclusos) que criou a mensagem, produziu as letras, e saiu às ruas (tomando os cuidados necessários) para pintar. Ghiraldini explica: “A urgência agora pede que as ruas sejam ocupadas. Não por gente, mas, sim, por mensagens que façam a população refletir e entender a importância de ficar em casa neste momento tão incerto”. Um alerta, mas contém o tom de otimismo e esperança. Lembra que na cidade precisamos agir por amor ao próximo: o vizinho, o dono do mercadinho local, o moço da banca de jornal, nossos amigos e familiares.

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Mas existe mesmo amor em São Paulo? O cantor, rapper, compositor e ator Criolo uma vez sentenciou em sua música a carência desse sentimento na nossa cidade. Uma das estrofes da canção, embora escrita há anos, reflete muito bem algumas das angústias pelas quais estamos passamos diante a pandemia do Covid-19.

CRIOLO. Não existe amor em SP. Álbum Nó na Orelha, 2011. Foto: CalçadaSP

Como o próprio Criolo retrucou, nas várias vezes em que foi questionado se acreditava na ausência de amor na cidade, tudo depende da São Paulo que existe dentro de cada um e o que essa São Paulo faz com cada um. Todos temos essa centelha de solidariedade, de compaixão, de colaboração. É natural nosso! Mesmo que em algum momento talvez alguém não consiga se conectar com essas qualidades devido a crenças desviantes, influências incertas, ou a alguma situação que esteja passando.

A verdade é que vivemos um momento em que parece escorregar dos nossos dedos tantos direitos que julgávamos óbvios e inescapáveis – como, por exemplo, sair às ruas. A cidade já não é mais nossa, esvaziada de sua complexidade. Ainda assim, precisamos encontrar formas legítimas de expressão no espaço público. E não há nada mais consagrado para isso do que a arte. Se temos um desejo de contribuição, ele pode ganhar forma na música, na fotografia, na dramaturgia, na pintura, no grafite … Todas as expressões de arte são ferramentas que podem, sem exceção, de um modo ou de outro, servir de forma pedagógica e ajudar a compreender algumas coisas.

ERRADO É NÃO AMAR. Foto: CalçadaSP

A arte é um ato de amor e também ato de coragem. Cabe aos artistas passar o seu recado. Pegar a energia concentrada, moldá-la e lançá-la ao mundo, para que cada um sinta a partir das suas referências, dos seus valores, das coisas nas quais acredita. Trabalhar o espaço como campo fértil de imaginação e distração, mas também de consciência e enfrentamento. É nessas circunstâncias e condições que o papel transformador da arte pode ainda mais emergir, ir além da mera representação simbólica para interferir na dimensão real da cidade.

“Minha mulher odeia quando eu trabalho de casa”, escreveu o artista na imagem compartilhada no seu Instagram. Foto: Reprodução/Instagram/Banksy

Na situação atual, a própria arte tem se modificado. Até mesmo sua ação marginal, que muitas vezes ocupa o espaço público de forma ousada e clandestina, ao se ver obrigada a ficar entre muros acaba encontrando nova forma de expressão. E isso vem acontecendo no mundo todo. Sem poder ir à rua e usar as paredes da cidade, o artista britânico Banksy não deixou de fazer suas famosas intervenções artísticas, escolhendo o banheiro de casa para criar uma nova obra e continuar ativo artisticamente, respeitando o isolamento social.

Enquanto artistas famosos fazem arte em casa, nas ruas dos EUA “artistas” amadores espalham afirmações como “tenha esperança“, “estamos juntos nessa” ou “mande beijos à distância” pelas calçadas com giz. São simpáticos cumprimentos deixados para os pedestres que, por diferentes motivos, precisam sair de suas casas e encarar a rua. Um jeito de iluminar o caminho com desenhos e citações, ajudando a tornar a travessia desse momento mais suave.

Escritos com giz na calçada em diferentes cidades dos EUA. Foto: Sun-Times

De volta à São Paulo, no CalçadaSP sempre tratamos a calçada como uma possibilidade de arte (sem, claro, negar seus problemas e desafios). Um território, a nosso ver, pouco explorado. Em 2018, por exemplo, fomos chamados para desenvolver um projeto para um empreendimento de moradia estudantil na Av. Duque de Caxias, na região central de São Paulo. Aliado ao novo conceito de “casa do estudante”, eles almejavam que as áreas comuns que circundavam o prédio assumissem uma nova aparência. Nossa proposta foi a de explorar instalações que satisfizessem a necessidade de entretenimento visual nas ruas e que contribuíssem para a revitalização da cidade. Nasceu, assim, o projeto #CalçadaComArte, uma galeria de arte a céu aberto que oferece a tela cinza da calçada a diferentes artistas, criando um cenário que muda com o tempo. O design urbano humanista e em constante transformação incentiva os “passantes” a se demorarem por lá, a admirarem sua beleza e a interagirem com a inovação. Ao mesmo tempo, os moradores dos prédios vizinhos podem apreciar a obra de suas próprias janelas. Nossa intenção foi criar uma plataforma para revelar o talento criativo paulistano, incentivar o olhar apreciativo para a calçada e transformar o espaço em um local multiartístico ao ar livre, envolvendo os moradores e os frequentadores da região.

Projeto do CalçadaSP na Av. Duque de Caxias, centro SP. Foto: Instagrafite

No livro “O Mundo das Calçadas”, o professor Eduardo Yazigi afirma que “o calçamento é justamente um dos principais indicadores do grau de civilização de um lugar. […] Ao mesmo tempo que há uma função prática no calçamento, parece haver uma simbologia ainda não explorada sobre tais chãos.”. Por mais que sozinho o grito de um grafite não dê conta de reivindicar tudo o que a cidade precisa (parafraseando novamente a música de Criolo), ele simboliza o que está sendo gestado na mente de seus habitantes.

Vale lembrar que a prefeitura paulistana vem apoiando e estimulando todas as manifestações artísticas, desde depoimentos em vídeo até intervenções urbanas, com mensagens de estímulo para as pessoas respeitarem o isolamento social. A ação Cidade Solidária, da Prefeitura de São Paulo, é um projeto que une administração municipal e entidades organizadas da sociedade civil para criar uma grande mobilização de voluntariado. Além de elencar medidas que ajudam a diminuir o risco de contrair e transmitir o Coronavírus, o site também orienta como cada um pode colaborar nessa luta contra o vírus. Alê Youssef, coordenador do projeto, vem afirmando que “a pandemia traçou uma linha civilizatória que separa os solidários daqueles individualistas, que só pensam em se dar bem. Estamos do lado da solidariedade.”

Quando pudermos voltar às ruas, fazemos a você o convite para andar mais pela cidade. Aprecie mais as calçadas e tudo aquilo que só o passo lento do caminhante deixa à mostra. Este pode ser o primeiro passo para pensar o melhor futuro que queremos para a cidade.

E, lembre-se: assim como lavar as mãos e usar máscara, arte, amor e doação também podem salvar vidas.

Siga o CalçadaSP no Instagram (@calcadasp) e use #calçadasp para compartilhar suas fotos, elas podem fazer parte da galeria de calçadas artísticas do projeto

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