A Vida no Centro

Carmen Silva do MSTC
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Carmen Silva, do MSTC: a moradia é a porta da entrada para os outros direitos

Coordenadora do MSTC e de várias ocupações modelo no Centro, Carmen Silva é a entrevistada do segundo episódio do podcast Hackeando a Cidade

Entrevista com Carmen Silva, coordenadora do MSTC e ativista do movimento de moradia; acompanha vídeo e podcast

Carmen Silva do MSTC

Denize Bacoccina e Clayton Melo

Mulher negra, nordestina e mãe de oito filhos, Carmen Silva deixou a Bahia fugindo da violência doméstica e em busca de uma vida melhor. Logo que chegou a São Paulo, em 1990, ela viu que ter um trabalho não era garantia de uma moradia digna, já que não ganhava o suficiente para pagar o aluguel. Durante muito tempo, ela teve que dormir em albergues. Vivendo na pele o drama de não ter onde morar, Carmen estava no grupo que grupo que, em 1997, ocupou a atual Ocupação 9 de Julho, um prédio do INSS entre as ruas Álvaro de Carvalho e Avenida 9 de Julho, no Centro de São Paulo.

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Hoje o espaço, onde vivem 123 famílias, é um exemplo de como um espaço abandonado pelo poder público pode ser transformado por meio das pessoas. Além de moradia, ali tem horta comunitária, escola, uma galeria de arte, brechó e, antes da pandemia, uma intensa programação cultural nos almoços que aconteciam uma vez por mês e juntavam centenas de pessoas. Desde o ano passado, os almoços foram substituídos por quentinhas entregues ou retiradas no local, todos os domingos.

Em 2000, o grupo da Ocupação 9 de Julho criou o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), coordenado por Carmen Silva com voz ativa e um olhar que acompanha dos pequenos detalhes à estratégia para participar dos editais e dos conselhos gestores das políticas públicas.

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Atualmente o MSTC coordena cinco ocupações em antigos prédios abandonados e está terminando o retrofit do antigo Hotel Cambridge, cujas unidades serão vendidas aos ocupantes com financiamento do Minha Casa Minha Vida. Esse prédio ficou famoso por causa do filme Era o Hotel Cambridge, que mostra o dia a dia do movimento e tem Carmen Silva como uma das protagonistas.

Além de ativista, Carmen também dá aulas de urbanismo no Insper, tem parceria com a Escola da Cidade e recebe especialistas de várias áreas nas ocupações, que prestam assessoria técnica ao MSTC.

Nesta entrevista, que você também pode ouvir em podcast ou ver no YouTube, Carmen fala de sua visão de cidade.

A conversa faz parte da série jornalística Hackeando a Cidade, criada pelo A Vida no Centro discutir a cidade pós-pandemia.

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Confira a entrevista a seguir:

As origens do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC)

Quando ocupamos o antigo prédio do INSS, entre as ruas Álvaro de Carvalho e Avenida 9 de Julho, ainda não era o MSTC, era o movimento remanescente dos mutirões da Luiza Erundina (prefeita de São Paulo entre 1989 e 1993), nas regiões periféricas de São Paulo. O centro era completamente abandonado. Fizemos essa ocupação em 1997 e na época era a maior ocupação vertical de São Paulo. O MSTC foi fundado em 2000, numa dissidência do Fórum dos Cortiços. Nós não queríamos só ocupar. Queríamos realmente ter o significado de morar. Morar é ter vida ativa no território, ter todos os equipamentos públicos.

A moradia para nós é a porta da entrada para os outros direitos. E a moradia é uma escola de cidadania. Não se pode reivindicar direitos sem compreender que direito não é assistencialismo e que nós também temos deveres.

A participação das mulheres

Cerca de 80% dos integrantes do movimento são mulheres. As mulheres entram reivindicando e depois começam a contestar, a mobilizar, a ter uma vida efetiva. A mulher está sempre lutando pelos direitos. Lutando por creche, por saúde, educação, lutando por trabalho. E é obvio que a moradia é um dos direitos.

O poder de articulação do MSTC

Nós temos todos os documentos, todas as certidões, participamos de todos os conselhos, de todas as conferências nos níveis federal, estadual e municipal. Participamos de todas as audiências públicas. Onde o poder público está tem que haver a participação popular. Não é só pegar uma bandeira. É preciso ter uma vida civil e jurídica em dia.

Prédios que poderiam ser convertidos em moradia

Existem 490 mil imóveis no centro expandido devedores de impostos, entre galpões, prédios, casarões abandonados. Pelo plano estratégico esses prédios deveriam ser notificados. Mas somente 1.425 foram notificados.

E temos 390 mil pessoas que moram em áreas de risco, em cortiços, que podem ser despejadas. Quando falamos em sem-teto, não estamos falando em população em situação de rua, que é outra população, e são 25 mil somente em São Paulo. Quando falamos em sem-teto é aquele que mora de aluguel, que mora de favor, que mora nos quintais. São todas as pessoas que não tem uma moradia definitiva.

O  MSTC luta para que moradia não seja uma mercadoria. Saúde não pode ser mercadoria, educação não é mercadoria, moradia não é mercadoria. Não precisa ser propriedade privada, pode ser locação, programas habitacionais.

Todo aquele que não tem uma moradia é um sem-teto. Precisamos quebrar esse paradigma de que sem-teto é  morador de rua.

Programas de moradia na região central

Tem muita discussão, mas não tem efetivamente muitas iniciativas. As PPPs (parceria público-privada) ainda são muito elitistas. A renda das pessoas não dá pra uma unidade dessas.

Temos que criar moradias que sejam inclusivas, que não tenham corte de renda.

Não adianta colocar as pessoas para morar no fundão, para que elas passem mais tempo no transporte do que com sua própria família.

O trabalhador de menor renda tem que morar próximo à escola, próximo à faculdade, tem que ter parque, teatro, morar próximo à UBS, ao comércio.

A cidade não pode ter uma área restrita só para moradia de baixa renda sem os equipamentos públicos. E os equipamentos públicos que existem nos centros urbanizados só serem acessíveis quando as pessoas transitam em determinado horário, sem pertencimento ao território.

Estrutura das ocupações

Nós fazemos a reforma dos imóveis que a gente ocupa. Temos a nossa própria assessoria técnica, em parceria com as escolas de arquitetura.

Ganhamos dois editais da CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), onde temos 60 arquitetos contratados, atuando nas ocupações e em outros projetos onde damos assessoria.

Temos uma portaria, uma equipe administrativa e uma equipe técnica, composta por assistentes sociais, psicólogos. Temos também um técnico jurídico e um técnico contábil. E o escritório administrativo do MSTC. Temos um regimento interno e tudo é decidido na assembleia. Cada morador, durante um período, é o mediador no andar em que ele mora. Eu sou muito legalista. Progressista e legalista. Todo mundo tem que cumprir a lei. A educação para nós também é muito importante, tanto que a gente tem reforço escolar, aulas de artes. Temos o projeto da cozinha. Na Ocupação 9 de julho estamos com projetos para mulheres, temos um projeto para refugiadas para disseminar a cultura de onde elas vêm e para geração de renda. E todo domingo temos o projeto Lute como Quem Cuida, de delivery de comida, e para cada almoço comprado um outro é doado para uma comunidade carente.

Professora de urbanismo

Eu dou aulas no Insper e faço parte do núcleo de mulheres e território, faço parte do núcleo de pesquisa de vivências. É uma troca da tecnologia, dos saberes. Pra mim, dar aula no Insper, na Escola da Cidade, fazer palestras em várias faculdades, participar  de bienais, ganhar o prêmio da Federação Nacional de Arquitetura, tudo isso mostra que somos todos urbanistas. Todos nós podemos ter um olhar pela cidade.

Temos que de fato morar no território onde estamos. Morar é ocupar, é participar. Ter um entendimento que a gente tem que preservar as calçadas, preservar os prédios. Ter um olhar voltado para os equipamentos públicos, para os privados. Tem que ter essa integração. Trabalhar em conjunto com a população.

A criminalização do movimento de sem-teto

Eu vejo que nós estamos incomodando com fórmulas simples. A desigualdade social é fruto da falta de política pública. E a política partidária está se colocando acima da política pública. E ainda tem muita desinformação entre as secretarias de governo.

Não somos invasores. Somos ocupantes.

Veja a entrevista em vídeo no YouTube e siga nosso canal:

O que deve ser feito para avançar no direito à cidade

O direito à cidade é uma visão do que deveria ser uma democracia. A participação de todos. A moradia não pode ser uma mercadoria. Temos que ter políticas públicas de acesso. Não adianta criar programa e não cumprir. Tem a Constituição, o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor dos Estados, os planos municipais, as operações urbanas. É participar, ter direito à moradia, ter direito à saúde, ter direito a acessibilidade não só transporte. É andar a pé até o seu trabalho, andar a pé até o parque. O direito de ir e vir, que pertence a todos.

O Brasil é um país democrático. E democracia é coletividade.

A São Paulo de hoje em comparação com a dos anos 1990: menos hostil?

Não. Só mudaram os refugiados. Naquela época, nós, brasileiros, éramos os refugiados no nosso país. Hoje temos os refugiados estrangeiros. O acolhimento ainda é a mesma coisa que era nos anos 70 com os nordestinos. Se é difícil para nos brasileiros, imagina pra quem chega e nem fala a língua.

O que tem de diferente hoje é que existem muitas entidades que atuam com isso, organizações sociais que ajudam. Mas o acolhimento em São Paulo é difícil. A pandemia é nova, mas as mazelas são as mesmas. E é através de um pacto solidário que o Brasil terá jeito.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.