A Vida no Centro

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Habitação e mobilidade são os principais temas do pós-pandemia, diz Nabil Bonduki

O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki discute as consequências da pandemia para a vida nas cidades, em entrevista da série Hackeando a Cidade

Entrevista com o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da FAU-USP e relator do atual Plano Diretor de São Paulo

Nabil Bonduki - arquiteto e urbanista

Clayton Melo e Denize Bacoccina

Quais são as mudanças provocadas pela pandemia na vida das cidades? Qual o papel da moradia, dos espaços públicos, o que deve acontecer com a mobilidade? São esses os temas da entrevista com o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da Universidade de São Paulo e ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo entre 2001 e 2004 e entre 2013 e 2016, quando foi relator do Plano Diretor que está em vigor atualmente. Nabil também foi secretário municipal de Cultura e está envolvido em discussões de políticas públicas para a cidade.

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“A questão da habitação vai ganhar mais relevância na vida das pessoas. Então as casas serão maiores, para quem puder pagar. E as casas terão que ser para todos”, diz Nabil Bonduk. Ele também analisa a tendência de aproximação entre casa e trabalho, tanto com o home office quanto espaços de coworkings mais próximos da residência, e as consequências para a mobilidade do menor deslocamento. Ele defende também a entrada do poder púbico com mais força na produção de moradias subsidiadas para pessoas de baixa renda. “O poder público tem que desapropriar, seja imóveis ou terra, e fazer esses empreendimentos com subsídios. Seja para a locação social, seja com financiamento subsidiado para venda”, diz Nabil.

A entrevista, que você também pode ouvir em podcast ou ver no YouTube, faz parte da série jornalística Hackeando a Cidade, criada pelo A Vida no Centro discutir a cidade pós-pandemia.

Ouça aqui o podcast:

O lugar da casa na cidade pós-pandemia

A pandemia mudou o lugar da casa, da habitação. Passou a ser o centro da vida das pessoas. Não sei quanto tempo isso vai durar. Mas o trabalho, a educação a distância, os debates, as palestras passaram a ser feitos por aqui (online), como esta nossa conversa. Além de um lugar de morar, será o lugar de trabalhar, de recrear, de cozinhar.

Nada disso é novo, tudo é uma aceleração de processos que já estavam em curso. Eu acho que a questão da habitação vai ganhar mais relevância na vida das pessoas. Então as casas serão maiores, para quem puder pagar. E as casas terão que ser para todos. Assim como o saneamento. O saneamento surgiu com as primeiras pandemias. A necessidade de ter água em casa, um serviço de saneamento que funcione.

Mobilidade

A mobilidade ainda é uma incógnita. A mobilidade já vinha passando por uma crise. Temos duas forças em tensão. De um lado a do urbanista, que defende que a cidade deve se organizar em função do transporte coletivo e da mobilidade ativa, trazer os empregos para mais perto das pessoas. E de uma certa maneira o home office está trazendo o trabalho para a casa das pessoas. Isso também pode pode gerar um outro tipo de situação, que são os coworkings próximos às moradias, não necessariamente dentro de casa. Alguns edifícios já estão prevendo área de coworkings, espaços de trabalho coletivo. Ou escritórios de coworking, para que as empresas possam ter espaços de trabalho, até equipes inteiras em regiões da cidade conectadas com outras equipes. O trabalho pode se aproximar da habitação. Só que isso cria um problema com a mobilidade. Transporte coletivo de massa, rápido, exige algum nível de aglomeração. Isso acontece em todas as cidades do mundo. Num certo horário o transporte é lotado e isso faz parte da eficiência econômica do modelo, que é um modal caro e requer uma certa quantidade de passageiros. Isso já estava entrando em crise e pode se aprofundar. Seja por conta dos aplicativos, seja pela redução da necessidade de deslocamento ou porque o custo do transporte coletivo está se elevando.

É uma incógnita o que vai acontecer. Mas é certo que a mobilidade ativa vai crescer muito, com a aproximação do trabalho da moradia.

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Espaço público

Outra questão que é uma incógnita, que eu estava pessimista, mas agora estou animado, é o espaço público. A pandemia tornou esse uso do espaço público uma incógnita, porque não se pode aglomerar, ficar próximo. Por outro lado, vejo que o desejo das pessoas pelo espaço público é muito grande.

Tendências pós-pandemia

Nós tínhamos três tendências antes da pandemia: moradias menores, com as pessoas ficando menos dentro de casa, a mobilidade ativa e o uso cada vez maior dos espaços públicos.

Então temos aqui habitação, trabalho, lazer, mobilidade. São as quatro funções da cidade, definidas por Le Corbusier. Há quase cem anos quanto a arquitetura e o urbanismo moderno estavam se desenvolvendo, se falava muito sobre a separação desses elementos, porque havia o fascínio do deslocamento com a tecnologia. Durante um certo tempo se tentou investir no deslocamento, mas isso ficou sempre insuficiente e já vinha mudando. Hoje, nas grandes cidades, vamos buscar cada vez mais proximidade entre a moradia e o trabalho, mais áreas livres e de recreação próximas da moradia e com isso vamos ter mudanças na mobilidade.

O grande desafio é como vamos garantir uma habitação digna para todo mundo. A pandemia excluiu muita gente que não conseguia mais pagar pela moradia. Temos que ter uma política urbana e fundiária que seja capaz de produzir habitações mais baratas e mais acessíveis e políticas públicas com subsídios. Obviamente se nós tivéssemos renda para todo mundo pagar uma moradia seria o melhor, mas isso não consigo nem ver no nosso horizonte. A quantidade de pessoas de baixa renda ou sem salário fixo é crescente, o que dificulta o acesso a um aluguel. É preciso discutir novas políticas para isso. Inclusive durante a pandemia deveríamos ter tido uma política para isso. Vimos muita gente indo para rua por não conseguir pagar um aluguel.

Precisamos ter um censo habitacional. É muito importante. Precisamos saber onde e como as pessoas moram.

Retrofits

Com certeza o retrofit é muito importante e cada vez mais. Fala-se muito em retrofits em prédios abandonados do Centro, mas uma cidade como São Paulo tem muitos edifícios de 80, 90 anos. Praticamente todos os prédios altos foram construídos nos anos 1940, 1950, 1960. Depois ficou parado e agora está voltando o interesse imobiliário na região central.

Tivemos muitos retrofits pressionados pelo movimento de moradia. Mas ainda existem muitos empecilhos na legislação. E são questões importantes, como patrimônio histórico, bombeiro, acessibilidade. A legislação contra incêndio surgiu depois de duas tragédias, no Joelma e Andraus. Não são questões desimportantes, mas geram certas dificuldades. Precisamos ter mais flexibilidade na legislação sem abrir mão dos objetivos. E fazer retrofit das coisas certas para as coisas certas.

Falta iniciativa. O poder público é muito lerdo e coloca questões secundárias.

Desapropriação de imóveis abandonados

No Plano Diretor, do qual eu fui relator, nós colocamos que 30% do Fundurb (fundo que recebe os recursos da outorga onerosa) iriam para aquisição de imóveis bem localizados para produção habitacional. Era para comprar imóveis ociosos e depois, através de outros mecanismos de financiamento, produzir habitação para a população de baixa renda. Mas isso foi modificado para ampliar não só para compra, mas também para produção habitacional. Aí se perdeu um enorme volume de recursos para desapropriar esses imóveis.

Isso é muito importante. A prefeitura pode desapropriar esses imóveis, dentro da lei, e usar esses imóveis para retrofit. Residencial ou comercial, dependendo do imóvel.

A demanda pública é importante. No Martinelli foi feito isso. Não tem por que construir um edifício novo para o governo quando você pode utilizar esses que já existem.

Veja a conversa na íntegra no YouTube:

Imóveis para trabalhadores de baixa renda no Centro

Para a população de menos de 3 salários mínimos não tem como fazer sem a participação do poder público. O poder público tem que desapropriar, seja imóveis ou terra, e fazer esses empreendimentos com subsídios. Seja para a locação social, seja com financiamento subsidiado para venda.

Mas existe um outro perfil de trabalhador do Centro, com renda de até 5, 6 salários mínimos, que também não conseguia morar na região, e agora tem a opção dos apartamentos pequenos que estão sendo construídos.

A outorga deveria reduzir o custo do terreno, mas isso não está acontecendo. Temos outros mecanismos, como a desapropriação. Tem vários mecanismos, e nem todos funcionam, porque o preço do solo é definido pelo mercado.

Densidade

Não sou contra prédios altos ou não. Depende do lugar e da situação. A cidade tem de ter todas as volumetrias. Depende da área. Não tem problema nenhum fazer outro prédio como o Mirante do Vale, porque aquele local já tem prédios altos. Mas tem outros bairros de casas que precisam ser preservados.

Bairros residenciais x bairros mistos

O Plano Diretor coloca o uso misto como um pilar e incentiva muito. Mas tem uma resistência, de uma porcentagem mínima da cidade, bairros de uso exclusivamente residencial como Pacaembu, Jardins, Alto de Pinheiros, Alto da Lapa. Eles representam apenas 4% da macrozona de qualificação urbana, que tem 700 quilômetros. Tem muita resistência nesses bairros em transformá-los em áreas mistas. O que eu acho que pode e deve acontecer nesses bairros é poder fracionar as casas. Hoje elas são exclusivamente residenciais e unifamiliares. Poderiam ser divididas e ter várias famílias morando no mesmo espaço. Tem casas com 1,5 mil metros quadrados. Aumentar o número de moradores sem aumentar a área construída.

Tem gente que defende verticalizar tudo e transformar tudo em uso misto. Eu acho que a cidade tem que ter diversidade. Tem que ter espaços mais calmos, espaços medianamente calmos, espaços mais agitados. Espaços mais verticalizados, outros mais horizontais. É isso é que a riqueza de uma metrópole como São Paulo. Em 1,5 mil quilômetros quadrados, a gente pode até ter produção agrícola. Temos muita possiblidade e podemos ter muitas alternativas. Vai ter gente que vai querer morar no Copan, e em outros Copans que eu espero que surjam na cidade, e tem gente que vai querer morar numa vilinha pequena, num terreno pequeno, encostado na via, com um pequeno quintalzinho no fundo, geminado, e que dá uma densidade que não é tão pequena assim.

Mas precisamos ter uma cidade mais compacta, uma cidade que caibam as pessoas, que os imóveis tenham um preço mais baixo. É uma combinação de elementos. Verticalização não necessariamente vai baratear o preço do imóvel. Esse prédio do Tatuapé é um exemplo.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.