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Gerald Thomas lança livro com histórias e reflexões em torno da cocaína
Por Marcio Aquiles
A cocaína é uma espécie de vício autotélico, ensimesmado, paradoxal, pode constranger o sujeito e deixá-lo bicudo no meio de uma festa ou expandir suas idiossincrasias ambiente afora. Não tece potenciais desconstruções do espaço-tempo (vide Salvia divinorum, por exemplo) nem intensifica os fenômenos sensoriais (LSD, Psilocybe cubensis, entre outras), mas é ela que vem à cabeça depois de tomar dois drinks1.
Blow-Pó, livro em edição bilíngue de Gerald Thomas que a Galileu Edições está lançando neste janeiro de 2023, é uma espécie de crônica subversiva, ode ao prazer alcaloide e sexual que cocaína pode proporcionar. Elucubrações metafísicas sobre arte e sociedade se misturam a histórias pessoais do autor radicado nos Estados Unidos, nome incontornável do teatro contemporâneo.
O índice catalográfico apresenta a obra como autobiografia, porém essa questão é lateral desde que os vetores mimético, formal e alegórico se entrelaçaram na arte – de maneira mais decisiva – a partir do Mallarmé de Un coup de dés. Pouco importa a veracidade de enredos como esse: ele e esposa transam com o traficante, com Gerald defecando, sem querer, no parceiro, que tem subtraída pelo casal uma pedra de uns sete gramas de pó enquanto se lavava, para esses de volta ao lar continuarem a cheirar e transar, até que a cocaína acabe, levando-os até o porteiro do prédio para conseguir mais carreiras, este também conduzido ao apartamento para mais sexo com a dupla.
O que vale, aqui, é a matéria literária, eficiente e saborosa. Se pende mais para o narrativo, a autoficção ou memórias, fica ao gosto do leitor. O próprio autor faz alusões que permitem essas múltiplas leituras: “este é um relato pessoal da minha experiência com a droga” em contraponto aos trechos “a vida de um autor pode ser transformada por ele em ficção” e “personagem e autor se reencontram e compartilham suas dores”. São expedientes consagrados.
Isso posto, é nítido que o livro também carrega consigo alguns propósitos extraliterários. O texto tem qualidade, em forma e conteúdo, mas é evidente que o projeto do autor não foi empreender um tour de force junkie–sexual tal qual Pornopopeia, ou promover um arregaço epistêmico como Naked Lunch.
Assemelha-se mais a um manifesto contra a caretice. Porque a caretice nesse país não é algo inofensivo. Ela bota uma bala na cabeça de quem não tem a cor certa. Ela destrói a vida de uma menina de onze anos que não pode fazer aborto após ser violentada, enquanto o estuprador continua livre, numa boa. Enquanto isso acontecer, obras artísticas que problematizam ou denunciam pseudo-conservadorismos de gente canalha são necessárias, simples assim. Podem ter viés lúdico ou militante, tanto faz, o essencial é que elas existam. O uso recreativo (e/ou medicinal, e/ou terapêutico) de psicoativos faz parte de todas as civilizações conhecidas. É algo natural. Anormal é achar que a obrigatoriedade de usar saias abaixo do joelho é uma lei/norma/determinação da natureza, como se o universo se importasse com a nossa insignificância.
A hipocrisia no Brasil é inacreditável. Se um cretino bebe três litros de uísque, dirige no centro da cidade a 180 km/h e atropela e mata vinte pessoas, nada acontece, ele é réu primário e seu pai deputado ou empresário vai resolver as pendências legais rapidinho. Agora se você passar a 45 km/h na frente de um radar de 40, a burocracia jurídica terá eficiência magistral ao te enviar gentilmente uma incontestável multa no dia seguinte. Por isso é tão saboroso ler Blow, onde sagrado e profano estão amalgamados como pasta base de coca, o pensamento sobre estética vem lado a lado com a orgia escatológica cheia de celebridades.
Evidente que numa terra desolada pelo provincianismo mais fútil, onde mesmo a Cannabis – planta com potencial biotecnológico, médico e econômico quase infinito, cujos efeitos recreativos (estes sendo os menos importantes), se utilizada como psicoativo, são levíssimos e menos destrutivos se comparados ao álcool ou tabaco – ainda é demonizada, em pleno século XXI, por políticos semiletrados e a caterva de igrejas fundamentalistas que os mantêm no poder, esse livro vai causar certo estardalhaço. Tanto quanto as Cosmococas de Oiticica2? Talvez. Porque se por um lado o reacionarismo parece ter se acentuado nos últimos anos, por outro a indiferença à linguagem3 aquilata-nos a autômatos monossilábicos, tornando a repercussão imprevisível. De qualquer modo, vale a leitura, trata-se de um livro modesto, sem grandes pretensões narrativas, contudo de significativa potência.
1 Constatação empírica.
2 O livro abre com a informação de que Gerald começou a usar cocaína aos 14 anos, quando “estava namorando um artista visual mais velho e renomado”. Embora não seja explicitado na obra, por simples cruzamentos com várias entrevistas do diretor, ‘desvenda-se’ que se trata de Oiticica.
3 Chegamos ao ponto crítico em que a indiferença (sobretudo dos mais jovens) não é mais nem com a literatura, mas com o lastro de nosso próprio léxico.
@marcioaquiles
Blow-Pó
Gerald Thomas
Galileu Edições, 2023
68 págs., R$40
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