A Vida no Centro

Ivam Cabral

Pantopolista paulistano

Ivam Cabral é múltiplo. Morador e apaixonado pelo centro da cidade, é ator, dramaturgo, cineasta, psicanalista e diretor da SP Escola de Teatro e da Cia. de Teatro Os Satyros. Publicou muitos livros, atuou em dezenas de países e recebeu prêmios no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos, em Cabo Verde, no Reino Unido e na Índia. Finalista ao Prêmio Jabuti em 2010, foi editado em Angola, Cuba, Finlândia, Portugal e Reino Unido; e teve textos seus traduzidos para o alemão, espanhol, inglês e sueco. A ideia desta coluna é falar sobre sociedade e cultura.

A Ucrânia da liberdade e da esperança

O teatro permitiu a Ivam Cabral conhecer cidades de vários países, e neste post ele traz suas recordações de Kiev, na Ucrânia, onde viveu uma das experiências mais incríveis de sua vida

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Tempo de leitura:5 minutos

Por Ivam Cabral

As crises que sempre marcaram a história da nossa nação, destruíram a riqueza do Estado e a garra do povo.
No entanto, tais crises guardavam o segredo
que leva os corruptos à prosperidade.
Estes parasitas souberam, durante todos esses séculos,
obter todas as vantagens possíveis à custa do sangue do povo.
Marquês de Sade, Os 120 Dias de Sodoma

Em 1993 eu tinha 30 anos. Vivia em Lisboa e costumo chamar essa fase da minha vida de heroica. Nesse ano aconteceu de tudo. Com nosso espetáculo A Filosofia na Alcova, que havia estreado em Lisboa com enorme sucesso, fizemos os dois dos maiores festivais de teatro do mundo: o de Avignon, na França; e o de Edimburgo, na Escócia; além de viajar muito com o trabalho. A obra, inspirada no Marquês de Sade, causava alvoroço por onde passava, sempre com plateias lotadas e bastante espaço na imprensa.

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Em Edimburgo, fomos processados pela Associação da Moral e dos Costumes Escoceses, que quase conseguiu a nossa deportação do Reino Unido. O motivo: cismaram porque cismaram que fazíamos sexo ao vivo. O imbróglio só foi resolvido quando a polícia atestou que o que fazíamos no palco do Theatre Workshop, um dos teatros mais respeitados do festival, era o velho faz de conta.

Ivam Cabral na Ucrânia
Ivam Cabral na Ucrânia, onde os Satyros se apresentaram em 1993

Então, pela superexposição conseguida em Edimburgo, fomos convidados para apresentações em Londres, no cultuadíssimo BAC – na época o templo da experimentação no mundo –; e no Teatro da Juventude, de Kiev, na Ucrânia. 

Aqui, uma crítica de Philosophy in the Alcove, no jornal The Times, quando nos apresentamos no Battersea Arts Centre, de Londres.

O convite para apresentações em Kiev veio do grupo Podol-Art-Proekt, que na altura também trabalhava na Escócia. Assim, em dezembro daquele 1993, passamos 15 dias na Ucrânia e foi uma das experiências mais incríveis da minha vida.

Tudo era muito estranho para nós. O país, que até 1992 pertencia à União Soviética, começa naquele momento a ensaiar os caminhos para a democracia e liberdades todas. De expressão, sobretudo.

A divulgação para as apresentações da peça era enfática. Podia-se ler no cartaz: 

Não esperem do espetáculo um encobrimento envergonhado dos abismos negros da alma e do corpo humano. Se os senhores temem ofender seus sentidos, é melhor evitar o espetáculo.

Mas havia uma coisa muito bonita ali. Nós, Satyros, éramos a primeira companhia ocidental a se apresentar no país, após a desintegração da União Soviética. E liberdade, principalmente de expressão, era tudo o que os artistas e intelectuais ucranianos, naquele momento, ansiavam.  

Ficamos hospedados na luxuosa hospedaria do Partido Comunista, que, em tempos soviéticos, era o local onde se acomodava a alta cúpula do partido. Quartos enormes e confortáveis, na periferia de Kiev, em meio à Floresta Holosiivskyi. Fazia muito frio e nevava muito. Meu primeiro boneco de neve foi construído ali, em dias felizes e cheios de esperança.

A Floresta Holosiivskyi, hoje Parque Natural Nacional Holosiivskyi, com mais de 11 mil hectares de terras florestais, é um lugar onde a natureza se torna história. Entre suas principais belezas, estão os carvalhos seculares, alguns com mais de 500 anos. Alces e raposas convivem com espécies raras de aves, em um território que, há mais de mil anos, ajudou nossos ancestrais a construir a Rus e a fé cristã.

Nesse clima, entre liberdade e muita esperança, no dia 4 de dezembro de 1993, um sábado, estreávamos no Teatro da Juventude, na rua Prorizná, bem no centro da cidade de Kiev, o nosso Philosophy in the Alcove, totalmente interpretado em inglês, com apontamentos em ucraniano.

Na segunda-feira, o jornal Nezavisimaya Gazeta trazia uma crítica, que afirmava:

Talvez o Marquês de Sade e o teatro brasileiro não estejam totalmente errados ao encarar o ser humano como um animal que não vive pela razão, mas por instinto.

Nunca uma crítica – e o Marquês de Sade – fez tanto sentido! O que estamos acompanhando, neste momento, é exatamente isso. O que Putin faz com o mundo é fruto de seu instinto irracional e, mesmo que busquemos alguma racionalidade, vamos limitá-la às suas vísceras.

Nada justifica esta guerra. Nem se olharmos para o imperialismo americano que, dizem alguns, está aí para ameaçar a paz mundial e, quando confrontados, irão colocar em perspectiva a crise de Israel com a Palestina, ou do próprio Estados Unidos com o Iraque.

Guerra é guerra sempre e temos que tomar partido, sim. Não só porque ameaçam – e destroem! – economias e famílias e cidades e amores. Mas, sobretudo porque roubam de nós as nossas histórias. Porque, em 1993, eu era um jovem de 30 anos e tinha a expectativa do porvir, mais nada. Tirassem isso de mim, naquele momento, e eu não seria nada.

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