A Vida no Centro

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Janaína Rueda: o Copan é uma escola de cultura e diversidade

A chef e empreendedora Janaína Rueda fala ao podcast Hackeando a Cidade sobre sua relação com o Centro de São Paulo e as transformações culturais da região

Entrevista com a chef e empreendedora Janaína Rueda, criadora do Bar da Dona Onça

Janaína Rueda, chef criadora do Bar da Dona Onça

Denize Bacoccina e Clayton Melo

A chef Janaína Rueda nasceu no Centro de São Paulo. Foi ali que ela foi criada, começou a trabalhar, mora até hoje e é no Centro que ela, junto com o marido, o também chef Jefferson Rueda, abriu uma série de empreendimentos gastronômicos. O primeiro deles foi o Bar da Dona Onça, no térreo do Copan, em 2008. Depois vieram o premiado A Casa do Porco, um dos melhores restaurantes do Brasil, listado em rankings internacionais, Hot Pork, ao lado a Sorveteria do Centro e, durante a pandemia, um delivery com todos esses cardápios, além de outras especialidades produzidas pelo casal.

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Mas não é só de negócios a vida de Janaína Rueda no Centro. Ela montou o seu restaurante no Copan, onde morava, porque queria ficar perto da família e continuar no bairro onde conhecia todo mundo. E, nesses tempos de emergência sanitária e social, ela continua buscando se envolver em projetos para construir uma cidade melhor para as pessoas, como conta nesta entrevista para o podcast Hackeando a Cidade, do A Vida no Centro. “O Copan pra mim foi uma grande escola de diversidade”, diz Janaína.

Leia a seguir os principais trechos , veja a gravação na íntegra no YouTube e ouça o podcast no Spotify.

A vida no Centro de São Paulo

Eu nasci aqui no Centro. Minha família morava num cortiço perto da Rua do Gasômetro. Depois eu morei dois anos perto da Mooca e depois fui morar na Bela Vista, perto da quadra da Vai-Vai. Fazia tudo a pé. Também morei na Rua Amaral Gurgel, morei na Rua Epitácio Pessoa, em frente ao Hot Pork. Era um lugar super boêmio, super musical.

Ouça o podcast com Janaína Rueda (e siga o canal no A Vida no Centro no Spotify)

A minha mãe sempre foi uma mulher da noite. Aos 15 anos eu comecei a trabalhar no Val Shows, era uma casa de shows de travesti. Eu fechava o caixa para o Val, que era o dono. Ele também era sócio da Nation. Eu sempre participei de todos os movimentos revolucionários. O hip hop, no Vale do Anhangabaú. Fazia videoclipes para o pessoal. Fui criada na quadra da Vai-Vai também. Por muito tempo ali foi a minha grande escola. Estudei no São José, onde depois fui fazer um piloto de merenda de escola. Sempre fui apaixonada pelo centro de São Paulo. Eu era uma menina muito curiosa e não conseguia ficar sentada numa sala de aula. A minha mãe vivia com a casa cheia de gente, muitos intelectuais, empresários da noite. Eu já ouvia outras histórias, mais reais, muito diferente do que eu via nos livros. Eu acabei me afastando cedo da escola e aprendi muita coisa nas ruas.

O Copan pra mim foi uma grande escola de diversidade. Em 1983, 84 tinha um Copan marginalizado, e muitos intelectuais, músicos, artistas, já moravam ali. Já tinha uma linda história. Eu ia entregar umas roupas que minha mãe fazia e ficava encantada com as meninas se arrumado, os músicos saindo pra tocar. Eu sempre enxerguei este lugar como uma grande escola de cultura e diversidade, de políticas públicas. Sempre foi um lugar de discussões.

Os restaurantes do Centro

Quando eu me casei com o Jefferson (Rueda), ele era um caipira do interior de São Paulo e eu uma pessoa urbana, do centro de São Paulo. Eu falei que queria continuar morando no Centro. Ele trabalhava em restaurante no Itaim, e trabalhava muito, nem conhecia a cidade. Quando nós nos casamos, eu comecei a cozinhar para ele, um chef que já era conhecido. E ele começou a gostar e me incentivar. Eu faço cozinha popular.

Eu já trabalhava na feira da República, numa barraca de comida. Fazia vatapá, galinhada. A minha mãe fazia alguns pratos. Sempre tinha gente em casa. A minha mãe alugava quartos para as meninas da noite. Minha mãe gostava muito de vinhos. Minha mãe trabalhou no Hippopotamus e no Gallery. Ela ficava na porta e deixava as pessoas entrarem ou não, então era super queridinha. Eu sempre frequentei esses restaurantes do Centro, os antigos. Eu trabalhei sete anos numa multinacional francesa, vendendo vinhos. Eu conheci o Jefferson, ele me deu esse apelido de dona onça. Eu gostava de usar roupas de oncinha, acho uma coisa forte. Aí eu resolvi abrir esse bar de comida popular brasileira, com a ajuda dele. Comida boêmia.

O Centro como um lugar de diversidade

Nos anos 1940 e 1950 esse bairro era super elitizado. Sempre teve uma vida muito intensa aqui. O que aconteceu depois foi uma especulação imobiliária muito grande para outros bairros. E aí o Centro ficou delicioso, porque a gente fez um monte de movimentos, tinha a Woodstok Discos, o Museu do Disco, a Galeria Metrópole. Esse movimento underground pegou todo esse lado do Vale do Anhangabaú. A periferia tomou conta da cidade e houve um diálogo muito forte entre Centro e periferia que não existia com a elite dos anos 1940. Isso é maravilhoso. Quando eu abri, em 2008, eu só queria viver no meu bairro. Não tinha a menor pretensão de falar em revitalizar nada, porque pra mim sempre foi revitalizado. Eu sempre vivi esse bairro como um todo desde que eu nasci.

O que eu vejo hoje é um movimento diferente. Um movimento mais intelectual. Que não é nem elite nem underground, mas é um movimento intelectual.  Um movimento que quer resgatar histórias, que quer relembrar a cultura do centro do São Paulo, que quer ocupar de forma coletiva. É um movimento diferente. Mas esses movimentos sempre existiram, nunca deixaram de existir. Só vai mudando a forma de pensar e a forma de incluir esse novo movimento nessa cidade – e neste lugar, que é maravilhoso e nunca deixou de ser.

Como surgiu o Bar da Dona Onça

Quando eu abri, em 2008, eu abri aqui porque tinha uma pressão muito grande de jornalistas, críticos, no restaurante do Jefferson. Eu queria me livrar disso, queria ser livre como sempre fui. Não queria ter que acertar o ponto em tudo. Pensei: eu vou trabalhar no Centro porque todo mundo já está acostumado comigo. Eu tinha barraca na República, vendia DanUp na rua, com sacola. Não tinha nenhum compromisso, queria ser livre. Mas, quando abri, como o Jefferson já era famoso, a matéria era “Janaina Rueda, esposa do chef Jefferson Rueda, abre restaurante no centro de São Paulo”.

Eu me assustei muito. Na primeira semana queria fechar a porta. Não estava acostumada com essa loucura. Abri no primeiro dia e lotou. Eram pessoas que estavam carentes de uma boa comida, que era dessa comida do Paddock, da Baiúca, do Bistrô, do Bar do Museu. Todos os restaurantes tinham fechado, com raras exceções. As pessoas estavam muito carentes de uma boa comida caseira, uma mistura a comida boêmia com a comida caipira. Foi o meu primeiro negócio numa cozinha mais profissional. O Jefferson teve que ficar três meses comigo, me ajudando.

E eu só queria cuidar do meu filho, nem tinha o segundo ainda, que praticamente nasceu dentro da cozinha. Eu queria ter tempo para o João Pedro. Eu já estava com todo o esquema para ficar muito próximo dos meus filhos e ter o restaurante ali para fazer comida caseira. Eu só ia abrir para o almoço. Mas tive que manter aberto até meia-noite e nunca mais fechei.

Efeitos da pandemia

Foi um período para refletir sobre essa minha paixão sobre o Dona Onça. Porque quando você entra no piloto automático, é como casamento, você se apaixona e desapaixona. Restaurante é a mesma coisa. É um ser vivo, porque é feito de muita gente. E às vezes você entra no piloto automático e esquece o que te levou até ali.

Nessa pandemia, a gente acumulou dívidas gigantescas. Eu achei que íamos fechar um dos restaurantes. Mas o que acontece é que o amor volta de uma forma tão forte.

E esse movimento todo acontecendo no Centro, novas livrarias abrindo, deixa um movimento bonito, e nesta rua, José Paulo Freire, que era um amigo da minha mãe. Você começa a relembrar tudo isso, a minha infância, tudo o que eu passei aqui, tudo o que eu vivi, aí você se apaixona de novo e luta pra manter. E essa paixão te faz vibrar de novo.

Foi horrível, eu vi um centro de São Paulo gritando e implorando por vida. Uma São Paulo implorando por humanidade, uma São Paulo fria, dura de viver na pandemia. Você ouvia o grito das pessoas com fome, porque estava tudo fechado na pandemia. E ao mesmo tempo você se redescobre. Começa a pesar em tudo o que você precisa ajudar e você não pode parar de ajudar o lugar onde foi acolhida desde sempre.

Cadeia de fornecedores e rede de apoio

A gente acabou comprando um sítio na terra do Jefferson, que era o lugar onde ele brincava quando criança. Aconteceu com ele o que aconteceu comigo, ele quis voltar para o lugar onde nasceu.

E agora estamos plantando orgânicos para todos os restaurantes. Era um sonho nosso ter orgânicos, mas era um plano para daqui a dez anos. O Jefferson teve um burnout e a agricultura o curou. Curou também os nossos negócios porque estávamos naquela loucura de 2019, trabalhando, trabalhando, e o capitalismo vai entrando na gente sem que a gente perceba. E isso fez com que a gente criasse uma rede de desenvolvimento com agricultura familiar muito forte ali da região. Sempre tivemos esse envolvimento com os pequenos produtores. E essa rede vem aumentando.

Veja o vídeo da entrevista com Janaína Rueda

O público do Centro

No Centro, como tem esse público mais intelectual, essa nova relação com a comida é muito forte. Não necessariamente é um público que tem muito dinheiro, mas tem muita informação, sabe o que está acontecendo no mundo.

Por isso cresce muito a procura por lugares vegetarianos, veganos. A busca pela ocupação de espaços públicos, com plantas, com o Parque Minhocão, o Ocupa Rua, a Escola da Cidade, com tantos arquitetos que são fundamentais para a construção de uma cidade mais digna e justa com espaços para todos.

Aqui o dialogo é muito bom. Muito forte a compra do local. Aqui as pessoas não usam carro, então não vão para restaurantes em outros bairros, vão no Dona Onça, no La Casserole, no Sertó, na Casa do Porco, no Pratada. Os cafés, como o Por um Punhado de Dolares, o Magg. São tantas coisas tão maravilhosas que abriram aqui no bairro, a cada momento abre um lugar novo. Isso é muito bacana porque atrai um público muito interessante.

Gentrificação e consumo acessível

Eu já fui perguntada pelo The New York Times o que eu achava dessa gentrificação. E eu falei que a gentrificação não existe agora. Existiu nos anos 40, 50, e 60. Não existe gentrificação. Aqui existe “gentificação”. Aqui a gente quer que as pessoas fiquem, a gente não quer que as pessoas vão embora.
Por isso a gente tem um restaurante cujo menu degustação poderia custar 500 reais se a gente estivesse em outro bairro, mas a gente faz questão que ele custe 160, e também tem um sanduíche por 20 reais e um porcopoca por 10 reais. Coisas que são super acessíveis. E a gente é considerado um dos melhores restaurantes do brasil, mas talvez o único que seja realmente acessível. Porque nós estamos nesse bairro e ele precisa disso, que seja acessível. Eu queria ser mais acessível e que fosse mais popular. Eu ainda sonho com isso.

Outros planos para a região

Nós queremos abrir uma mercearia com os nossos produtos, com tudo o que a gente produz. Eu tenho um sonho de ter um lugar bem acessível, mas agora não consigo fazer. Deve ficar para 2023, 2024. Enquanto isso, eu busco estar com os meninos do Pão do Povo, que faz um trabalho lindo na Luz. Inclusive estou indo lá agora. Toda quarta-feira eu vou.

Projeto das merendas em parceria com o Governo do Estado

Durou quatro anos e chegou a 2.520 escolas. Treinei pessoalmente 2 mil merendeiras com um cardápio de 10 receitas populares do Estado. Trocamos todos os enlatados e ultraprocessados por produtos in natura. O segundo passo seria chegar nos orgânicos, fazer hortas, as infusões de chás.

Esse projeto existe ainda. Não está sendo feito por conta da pandemia. Mas já tem uma lei aprovada e vai ter uma cobrança muito forte para que ele volte. Na volta às aulas, a comida in natura tem que estar dentro de todas as escolas do país.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

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