A Vida no Centro

Caio Vassão - tecnologias regenerativas
Publicado em:
Tempo de leitura:5 minutos

Como as tecnologias regenerativas podem transformar as cidades

O arquiteto e urbanista Caio Vassão fala sobre os efeitos da pandemia nas cidades, mobilidade e regeneração

Entrevista com o arquiteto e urbanista Caio Vassão, head de inovação da consultoria Kyvo, sobre mudanças na cidade com a pandemia, mobilidade e impactos no mercado imobiliário

Por Clayton Melo e Denize Bacoccina

O arquiteto e urbanista Caio Vassão começou a carreira como arquiteto, mas logo enveredou para o estudo de um outro tipo de arquitetura: o das relações sociais. Doutor pela FAU-USP, ele é designer, professor do Instituto Europeo de Design e head de inovação da consultoria Kyvo.

NEWSLETTER

Assine nossa newsletter para ficar por dentro de tudo o que rola no centro

Nesta entrevista ao podcast Hackeando a Cidade, ele fala sobre as mudanças provocadas pela tecnologia e que foram aproveitadas com a pandemia, como a possibilidade de trabalhar e viver em vários lugares ao mesmo tempo, e como isso vai impactar não só a mobilidade como o mercado imobiliário num futuro próximo. Vassão é otimista com a ação do homem sobre o planeta, e acha que é possível usar tecnologias regenerativas para mitigar ou reverter o estrago causado ao meio ambiente.

Leia as outras entrevistas da série Hackeando a Cidade:

“Não devemos copiar Paris, mas definir nossa própria agenda”, diz Alejandro Echeverri, pai do urbanismo social

Carmen Silva, do MSTC: a moradia é a porta da entrada para os outros direitos

Habitação e mobilidade são os principais temas do pós-pandemia, diz Nabil Bonduki

A entrevista com o Caio Vassão também está disponível na íntegra em vídeo, no YouTube, ou em áudio, no Spotify.

Leia aqui os principais trechos:

Trajetória da arquitetura para o design de cidades

Não sou um arquiteto muito usual. Trabalhava como arquiteto, até o momento que percebi que algumas questões eram mal trabalhadas na arquitetura e no urbanismo, especialmente a questão urbana. Muitos arquitetos conhecem a antropologia urbana, mas raramente isso dialoga com o projeto. Aquilo foi me incomodando e fui me perguntando: eu sei quem projeta o espaço da cidade, os prédios, mas quem projeta as relações sociais, as relações políticas, as relações de pertença, relações de desejo? Como a cultura urbana emerge e vai constituindo relações que por sua vez demandam um tipo de cidade?

E acabei desenvolvendo essa abordagem do metadesign para tentar entender isso, como essas relações acontecem e como a gente pode fazer intervenções interessantes nessas relações. Um dos conceitos que eu trabalhei é o não lugar. O lugar não é geográfico, o lugar é o que se passa na nossa cabeça. Ou nas várias cabeças das pessoas que habitam aquele lugar. O lugar é um jeito de agir socialmente, um jeito de ocupar o espaço. E o espaço deve servir às intenções de interações sociais que nós temos. A cidade não é um teatro, um palco onde os atores sociais vão lá desempenhar uma peça. É mais orgânico, mais sobreposto.

Ouça o podcast com Caio Vassão:

Como o design se insere nisso?

Design, de forma mais ampla, é qualquer forma de projeto. Mas hoje em dia, no design estamos tentando entender o papel do usuário dentro do sistema. Como esse usuário participa do sistema e como ele é atendido. Por incrível que pareça não é a abordagem tradicional da arquitetura, que projeta o edifício a partir de uma imagem de usuário. O design tenta ver como esse usuário pensa e como eu posso me comunicar com ele por intermédio da minha intervenção.

Cidades distribuídas. O que é e como foram afetadas pela pandemia

Uma cidade distribuída é uma cidade sem um centro bem definido. Não tem uma hierarquia fixa, constante, pode variar. Não é muito fácil identificar essa hierarquia. A internet é um sistema distribuído. Normalmente se tem um polo atrator no território, o centro urbano, e longe desse centro teria a periferia e depois o território rural ou selvagem, onde não acontece vida humana. Vimos uma intensa urbanização global nos últimos dois séculos. No Brasil, 80% da população vivem em cidades. E a partir das décadas de 1960 e 70 acontece a banalização da tecnologia digital, da telecomunicação, e a partir de 1990 a popularização da tecnologia digital é tão grande que as pessoas andam com dispositivo no bolso, que é o celular. A partir disso a comunicação distribuída da sociedade é inegável. As pessoas conseguem se comunicar de uma maneira que não precisa passa por filtros pré-definidos. Não precisa um intermediário.

Centro e periferia

Quando a gente pensa em tecido urbano, o centro não é mais importante do que a periferia. As pessoas conseguem ter vida urbana, uma vida de intensa interação social, onde quer que elas estejam. Você começa a ver movimentos de startups, hackatons, por exemplo, em lugares inusitados. O que se esperaria ver em polos globais como Nova York, Berlim, Londres, você já começa a ver no interior de Minas Gerais, na Amazônia, no meio da África. E começam a surgir inovações nesses locais que têm relevância global. Estamos vivendo num meio urbano global distribuído, onde já não é tão fácil reconhecer o centro e a distinção entre periferia e centro não é tão clara. Há uma sobreposição de centro e periferia.

O urbanista inglês Cedric Price definiu bem isso, comparando a cidade com um ovo. A cidade antiga era um ovo cozido: o centro da cidade era a gema, e a parte não tão rica em termos de interação social era a clara. Depois da revolução industrial o desenho é de ovo frito, meio espalhado, não se consegue perceber tão claramente esse adensamento. Tem o centro, que é a gema, e a clara, que vai diminuindo aos poucos de densidade. Já na década de 1960 ele dizia que no futuro teríamos uma cidade que é um ovo mexido: tudo misturado, sem definição de centro e periferia. E é exatamente o que estamos vendo hoje em dia.

E neste conceito temos a macrometrópole. No Brasil temos uma macrometrópole, no quadrilátero entre São José dos Campos, Sorocaba, Campinas e Santos. Tem mais de 30 milhões de pessoas e é toda perfurada e não dá pra definir onde está a cidade. A cidade é muito mais um jeito de fazer as coisas do que uma localização.

E chegamos a um qualidade importante da cidade distribuída que é a translocalidade, a qualidade de conectar vários lugares diferentes numa mesma ação, numa mesma interação social. Que ao mesmo tempo é transitória.

A pandemia só acelera isso. Quem pode responder com telecomunicação respondeu e estamos vendo a cidade virar uma espécie de experimentação a ceú aberto. Eu posso morar no centro de São Paulo e no fim de semana ir para Ibiúna e depois passar uma temporada na praia. Essa sensação de oscilar, estar em trânsito. Também tem a ver com mobilidade.

Assista ao vídeo:

Trabalho remoto mais abrangente pode mudar esse cenário

São Paulo é uma cidade que nasceu policêntrica. Assim que começou a crescer ela teve muitos centros diferentes, que cresceram quase tão rápido quando o centro histórico. Outras cidades brasileiras e europeias também são assim.

Mas podemos considerar que essa conectividade ainda é restrita a quem tem dinheiro, consegue ter banda larga na praia, no campo, na casa dos pais, dos filhos.

No curto prazo, me parece que tende à exclusividade. Mas do mesmo jeito que celular era uma coisa exclusiva 20 anos atrás e hoje em dia está na mão de qualquer adulto, praticamente em qualquer lugar do mundo. Tem lugares que tem celular e não tem água limpa.

A curto prazo me parece uma coisa bastante exclusivista, mas a longo prazo me parece uma coisa inevitável.

Impacto sobre o mercado imobiliário

Tanto que precisamos ver o impacto que terá sobre os bens imobiliários. Eu tenho falado que, onde tem conectividade, tem cidade. Isso obviamente não se aplica para ocupações que são manuais. A gente vê claramente uma lacuna entre populações que tem acesso à conectividade e outras que não tem ou tem menos. E aí a gente vê o precariado, o pessoal da uberização. É quem está provendo serviço para o outro grupo.

No meio do caminho aparece a economia de plataforma. A curto prazo a gente vê uma divisão entre dois grupos. O que eu prevejo para daqui a dois ou três é uma fragmentação entre muitos grupos diferentes e muito dinâmicos.

Aí eu acho que vamos ver uma mudança grande no tecido urbano e o impacto na posse do imóvel. A posse do imóvel pode virar um problema. Vamos ver como o mercado imobiliário vai lidar com essa hipermobilidade.

Estamos vendo um movimento interessantíssimo de consolidação de carteiras de investimento. Grandes investidores comprando muitos imóveis e ofertando para aluguel. Quem conhece mercado imobiliário olha a posse do imóvel como passivo financeiro. Uma fonte de custo, não de renda. Como lidar com isso? É bem provável que a gente aprenda a ter outra relação com os imóveis. O valor dos imóveis tende a cair. Temos uma tendência de queda populacional, algumas previsões dizem que até o final do século vamos ter uma população global de 4 bilhões. E com isso podemos ter uma oferta de imóveis maior do que a necessidade.

O que eu tenho aconselhado meus clientes do mercado imobiliário é associar algum serviço ao imóvel, para criar uma relevância.

Sustentabilidade e cultura regenerativa

Regenerar é deixar o ambiente melhor do que ele era antes. É difícil, mas é possível. Um exemplo é a terra preta de índio, que é um solo da Amazônia que se conhece desde a época da colonização. Se estima que havia de oito a 40 milhões de pessoas vivendo na bacia amazônica antes da colonização e essas populações praticamente desapareceram. Descobriu-se há pouco tempo que essa terra é uma terra antrópica, foi feita por seres humanos. É uma técnica sofisticada, envolve um tipo de queimada controlada, misturada com compostagem, restos de cerâmica triturados. Ela é regenerativa porque onde tem terra preta tem mais biodiversidade na terra e no subsolo. A floresta agradece. A tecnologia regenerativa é possível. Quando essa terra preta foi feita, lá atrás, a densidade era maior do que é hoje.

Outra tecnologia é a dos biodigestores. Aquilo gera gás que é combustível e gera água cinza que pode ser usado para irrigação. É uma tecnologia conhecidíssima que ninguém usa de forma regenerativa, que seria tratar o efluente humano dentro do lote.

Outra tecnologia regenerativa é a horta urbana. Eu mesmo me envolvi há alguns anos com um projeto de agrofloresta urbana para uma rede de supermercados.

Tem uma variedade de soluções regenerativas muito grande.

Muita gente fala em soluções baseadas na natureza, onde a natureza é parte integrante da solução.

Desconsiderando os seres vivos que participam da nossa vida urbana a gente piora a qualidade de vida deles e nossa. Se a gente considera os seres vivos, traz para perto e incorpora nessas soluções, a gente melhora a qualidade de vida de todos. E aí tem muitas possibilidades: jardim de chuva, evapotranspiração, jardins comestíveis e muitas outras.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

Categorias e tags

Cidades Gente no centro Podcasts
Denize Bacoccina

Denize Bacoccina

Denize Bacoccina é jornalista e especialista em Relações Internacionais. Foi repórter e editora de Economia e correspondente em Londres e Washington. Cofundadora do projeto A Vida no Centro, mora no Centro de São Paulo. Aqui é o espaço para discutir a cidade e como vivemos nela.