A Vida no Centro

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A mobilização para salvar lojas, bares, cafés e restaurantes do Centro

Clientes se engajam para tentar salvar lugares que ocupam um lugar não só de consumo, mas também afetivo na vida dos frequentadores

Denize Bacoccina

Ayla Fernandes e Carlos Xavier se conheceram no bar Alberta #3, na Avenida São Luís, no Centro de São Paulo. Há alguns dias, quando souberam que a casa corria o risco de fechar, se juntaram ao coro dos amigos que incentivaram as proprietárias a fazer uma vaquinha coletiva para pagar as dívidas acumuladas no período de fechamento e manter o local até a reabertura, em algum momento futuro. Para estimular as doações, eles ainda gravaram um vídeo, elencando os 10 motivos para ajudar o Alberta #3. “Porque eu fiz grandes amigos por lá”, “porque é o melhor drinque da cidade”, “porque é a melhor casa de rock da cidade, feita por amigos, para amigos” são algumas das razões elencadas por eles para mobilizar mais pessoas a apoiar o bar.

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É esse o espírito das iniciativas que têm aparecido nos últimos dias para tentar salvar bares, cafés, restaurantes, baladas ou mesmo lojas que ocupam um lugar não só de consumo, mas também afetivo na vida dos frequentadores. Noemi Rosa, sócia de Neiva Silva no bar que surgiu há 11 anos e foi um dos pioneiros desta retomada do Centro como espaço boêmio, conta que frequentemente se pega chorando ao ler as mensagens dos apoiadores, que vem colaborando com a vaquinha criada nesta semana. “A balada tem uma extensão depois que a noite acaba. Tem pessoas que se conhecem aqui e tornam amigos, começam uma relação, começam negócios”, diz ela.

Nos dois primeiros dias, já conseguiram arrecadar 15% dos R$ 93 mil estabelecidos como meta para manter a roda girando, mesmo em velocidade mínima. “Este valor é para não fechar. Não estamos pagando todas as dívidas, é só para manter a operação”, disse Noemi.

O bar, que tem um público fiel vindo de várias partes da cidade atraídos pela boa música e atmosfera de festa entre amigos, fechou em março do ano passado e montou uma pequena operação de delivery de gins infusionados, gerando uma parte da receita anterior. Quando reabriu, em agosto, fechou a pista do subsolo e reduziu a capacidade, de 180 pessoas, para apenas cinco mesas. A amiga Drica Cruz, que estava com tudo pronto para montar um bar dentro de um sebo levou para o local a loja A Bruxa Antique e assim foram levando, mesmo com prejuízo. “Desde que reabrimos em agosto nunca saímos do vermelho”, diz Noemi. Até que o fechamento de março deste ano levou o faturamento para zero, enquanto o aluguel continuou chegando.

O apoio dos amigos para a vaquinha deu um novo ânimo para a dupla. Amigos doaram obras de arte e fotografias para serem leiloadas entre os apoiadores. Mesmo o menor valor, de R$ 35, dá direito a um ingresso para a festa de reabertura, quando for possível, e um drinque.

Noemi Rosa e Neiva Silva, sócias do Alberta #3

“É muito bom quando você vê o quanto você é querido, o quanto a noite é importante. As pessoas querem ter para onde voltar quando a pandemia acabar. Ver os lugares fechando dá uma dor no coração”, diz ela, lembrando de bares que já fecharam definitivamente, como o Genésio, na Vila Madalena, e o vizinho, Ramona, há nove anos instalado na esquina da São Luís com a Rua da Consolação.

Mensagens emocionantes dos clientes

Uma das mensagens que emocionaram Noemi foi de uma frequentadora, que estava lendo o post de despedida enquanto ouvia a música Heroes, de David Bowie (o Alberta #3 se tornou um reduto de fãs de Bowie e promove todos os anos uma festa no aniversário de nascimento do artista, em 8 de janeiro). Uma coincidência que mostra que um bar pode ser muito mais do que um bar, mas um lugar onde se forma a memória afetiva das pessoas. “As pessoas querem continuar fazendo parte de algo”, diz ela. “E poder ajudar algo de que gostam faz com que elas tenham mais esperança no futuro. É tanta gente morrendo, tanta tristeza, que acho que na volta, depois dessa pandemia, todo mundo vai se sentir um pouco herói.”

Outros lugares da região da República que também eram ponto de encontro de moradores da região não resistiram à primeira onda da pandemia, em 2020, e não reabriram. Entre eles o Modernista Coffee Stories, na Rua Major Sertório, e o Bento Café, na Rua Bento Freitas, no mezanino da sede do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Do outro lado do Minhocão, o Jardin do Centro foi repaginado como loja de antiguidades e o Mandioca Cozinha, na Rua Cesário Mota, fechou em janeiro.

Avante, Francisca

A Casa de Francisca, bar/restaurante/casa de shows instalada desde 2017 (funcionava antes num local menor nos Jardins) num palacete tombado (e completamente restaurado) no centro histórico, luta para se manter mesmo com o fim dos shows há mais de um ano e o fechamento total desde março desse ano, depois de um retorno que durou apenas três meses. Antes da pandemia, a qualidade da música e a beleza do lugar garantiam casa cheia tanto nos shows noturnos quanto nos almoços. Cerca de 8 mil pessoas passavam pelo local a cada mês, e a programação tinha cerca de 25 shows.

Em dezembro, a casa voltou com os almoços, com capacidade reduzida e protocolos rígidos de circulação e uso de máscara, com música apenas no fim de semana. Mas a nova paralisação quase levou ao fechamento definitivo. Com a repercussão da notícia, frequentadores e artistas se mobilizaram para uma solução que permita passar por este período.

Casa de Francisca

A campanha de mantenedores Avante Francisca tem uma meta de arrecadar R$ 120 mil por mês, para manter a casa funcionando até que seja possível a reabertura completa, o que não é esperado para este ano. “O nosso anúncio foi uma convocatória para o público, classe artística, governo e empresas interessadas na reconstrução da cultura. A receptividade está sendo muito boa, mas não é fácil num momento de crise as pessoas se comprometerem”, diz Rubens Amatto, cofundador e curador da casa.

Além da contribuição dos mantenedores, a Casa de Francisca também está conversando com empresas para ações maiores. “Se antes da pandemia a cultura já era marginalizada, com a pandemia o setor está completamente sem recurso para um projeto de retomada”, diz Rubens. “Estamos tentando de várias formas. As empresas têm recursos e poderiam pensar menos em marketing e mais na cultura da cidade.”

Palacete Teresa Foto: Pedro N. Prata

A localização no centro histórico tem uma vantagem – o casarão do começo do século 20 onde a Casa de Francisca está instalada, o Palacete Tereza, é lindo e tem uma história ligada à cultura, foi sede da Rádio Record – mas também desvantagens. Fica no meio do calçadão, sem acesso motorizado, o que dificulta operações de delivery e mesmo o acesso de pessoas com mobilidade reduzida. Além disso, a pandemia agravou a questão social e o número de pessoas em situação de rua na região. “Não faz sentido pensar na nossa retomada e ignorar o que está acontecendo no nossos entorno. Precisamos de ações em comum com as atividades sociais e culturais”, diz Rubens.

Mirante 9 de Julho

Outro que também está contando com a ajuda dos frequentadores para manter o negócio é o Mira, o antigo Mirante 9 de Julho, espaço sobre a Avenida 9 de Julho que junta bar, restaurante, café, coworking e espaço cultural, além de baladinhas e cinema na escadaria. O espaço ficou fechado por oito meses no ano passado e reabriu em outubro, já adaptado para um lotação menor, sem atividades que gerassem aglomeração.

Mira

“O espaço foi perfeito nas fases laranja e amarelo porque as mesas já são isoladas por causa dos pilares. Tiramos as cadeiras extras, reduzimos a equipe e conseguimos pagar as contas entre dezembro e fevereiro, renegociamos os débitos atrasados, estava tudo indo bem”, conta a administradora do espaço, Dulce Cunha Moreira dos Santos. Mas aí veio março, um novo fechamento, e todo o planejamento da retomada foi para o espaço.

Mas ela não desistiu e, sem perspectiva de reabrir o local, preparou uma operação de delivery. Montou um cardápio, pesquisou embalagens, planejou a entrega. A operação estava prevista para começar na terça-feira, dia 30 de março. Só que no sábado anterior, dia 27, o local foi roubado. Ladrões levaram todos os cabos de energia, do lado de fora e de dentro. O anúncio de Dulce de que o Mira seria fechado provocou uma onda de solidariedade entre os frequentadores e ela decidiu abrir uma vaquinha para quem quiser contribuir para manter o local aberto. “A comoção das pessoas e a quantidade de posts e mensagens fizeram a gente tentar mais um pouco”, diz Dulce.

Ela estabeleceu uma meta de R$ 91 mil, que vai pagar a reforma elétrica, orçada em R$ 40 mil, e manter o espaço funcionando até que se possa reabrir por completo. É possível doar pelo vaquinha virtual ou enviando um Pix diretamente. Artistas que passaram por lá também estão organizando lives para ajudar na arrecadação.

“Estou otimista de que vamos conseguir. Assim que juntar o dinheiro vou ligar a luz imediatamente”, afirma. Dulce já começa a retomar os planos que tinha até fevereiro, como uma pintura na laje, para ser vista de cima, alusiva a este período. “O Mira é da cidade.”

Jardim Secreto

Outro projeto que corre risco de fechar é o Galpão Jardim Secreto, na Rua Major Sertório. O projeto começou em 2013 com feirinhas pequenas em quintais, vendendo produtos artesanais e artísticos cresceu até chegar a uma casa permanente no Bixiga, uma feira grande em local aberto que teve sua última edição em dezembro de 2019 e o galpão da Major Sertório, rua que se transformou nos últimos quatro anos com os novos estabelecimentos que abriram no local.

Galpão Jardim Secreto

Com a pandemia, as sócias Claudia Kievel e Gladys Thoport fecharam a loja do Bixiga e concentraram tudo no Galpão Jardim do Centro, que funcionou desde que o comércio foi autorizado, no segundo semestre do ano passado, até o começo de março deste ano, quando tinham produtos de 130 marcas parceiras. Com faturamento zerado, elas anunciaram no início de abril o encerramento das atividades. Mas aí os consumidores começaram a pedir os produtos online e as vendas ganharam força. “Estamos praticamente decididas a fechar. O que pode evitar é se tivermos um apoio muito grande”, diz Claudia.

Uma vaquinha online tem como meta arrecadar R$ 35 mil para fechar as contas de abril. “Não cobre o empréstimo do mês passado, que vamos começar a pagar daqui a algum tempo. Mesmo que a gente consiga bater a meta, se não reabrir não conseguimos sustentar a operação”, conta Claudia. “Mais do que o Galpão, estamos tentando manter o projeto.  Ele nunca foi pensado para ser online, mas presencial.”

Galpão Jardim Secreto

Ela não acredita, no entanto, que as feiras, que eram o ponto central do projeto, serão realizadas tão cedo. “A volta vai ser com medo. As pessoas não vão voltar com tudo.”

Mesmo com cautela, quando a cidade reabrir e as pessoas começarem a frequentar bares, restaurantes, lojas e café, vai ser bom reencontrar os lugares onde construímos nossas memórias pré-pandemia.

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