A Vida no Centro

Wilson Levy - Pandemia - Cidades Inteligentes
Publicado em:
Tempo de leitura:5 minutos

Pandemia muda relação cidade e trabalho e estimula a reivindicação de novos direitos

A pandemia acelera transformações e reforça a necessidade de políticas urbanas baseadas em dados, diz Wilson Levy, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP e coordenador do mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE

Por Denize Bacoccina e Clayton Melo | No plano das cidades, a pandemia no novo coronavírus deve acelerar mudanças que já estavam em curso, especialmente as transformações no mundo do trabalho e suas interações com o espaço urbano. A análise é de Wilson Levy, advogado e doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP, com estágio de pós-doutoramento em Urbanismo pelo Mackenzie e em Direito da Cidade pela UERJ. Ele também acredita que a internet, por exemplo, será vista como um serviço básico, como água e energia elétrica, já que ficou evidente que ela é necessária para o exercício dos outros direitos, como o recebimento dos auxílios do governo.

NEWSLETTER

Assine nossa newsletter para ficar por dentro de tudo o que rola no centro

Nesta entrevista ao A Vida no Centro, Wilson – que também é diretor do mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE – afirma que, na nova configuração do mercado de trabalho, as profissões do futuro estão ligadas ao universo da tecnologia e da criatividade. “Temos as novas profissões da economia criativa, aquelas ligadas ao ambiente virtual, à tecnologia, programação de aplicativos, programação de software, que já indicavam que os deslocamentos na cidade não eram de todo necessários”, diz. “Acho que a pandemia vai acelerar a incorporação de novas rotinas de trabalho na vida das pessoas e elas vão perceber que muitos deslocamentos, que eram feitos quase que por inércia, se tornaram desnecessários”.

Pandemia, cidade inteligentes e trabalho

Nesse sentido, a necessidade de discutir políticas urbanas com base em dados e estudos científicos deve ganhar força – e isso está relacionado ao debate sobre cidades inteligentes. “Este é um momento bom para reafirmarmos que, qualquer que seja a decisão sobre determinada política urbana, ela precisa ser baseada em dados, em indicadores e isso precisa ser acompanhado, monitorado, ajustado, para que produzam efeitos práticos que causem resultados na vida das pessoas. Isso tem muito a ver com cidades inteligentes”, diz.

OUÇA ABAIXO O PODCAST COM WILSON LEVY SOBRE O FUTURO DAS CIDADES PÓS-PANDEMIA

“As pessoas pensam em cidades inteligentes pensando em semáforos, aquelas telas cheias de gráficos, números. A cidade aproxima as pessoas. Se ela for bem-sucedida em aproximar pessoas diferentes, permitir que as interações sejam ricas e construtivas e com isso colocar em desenvolvimento acelerado o processo de criação de soluções inovadoras, aí, sim, estamos diante de uma cidade inteligente”, afirma.

E LEIA ABAIXO OS PRINCIPAIS TRECHOS DA ENTREVISTA:

A Vida no Centro – Já pensando no momento em que as atividades puderem retomadas, talvez daqui uns dois meses, como você vê a retomada da vida na cidade? O que você está projetando em termos de transformações e impactos, passada a primeira onda da pandemia?

Wilson Levy – Acho que, num primeiro momento, as pessoas vão buscar restabelecer algum nível de contato social. Somos seres gregários, sociais, e isso é o que as pessoas mais têm sentido falta nesse período. Para retomar algum nível de contato social, acho que devem ser observadas as regras de higiene e o uso de máscara. As pessoas vão buscar restabelecer o contato social, seja com seus parentes que estão também em isolamento, seja com amigos. Acho que teremos um primeiro momento de euforia. Ainda que seja uma euforia marcada pelo receio, pelo medo, pela insegurança.

No plano das cidades, a pandemia acelera um processo que já estava em curso, a da transformação no mundo do trabalho. A cidade é o local onde 85% dos brasileiros desenvolvem sua atividade produtiva, sua atividade econômica. Já vínhamos de um processo que alguns chamam de quarta revolução industrial, que trouxe um impacto grande na maneira como nos relacionamos com o território. As profissões do futuro são as profissões ligadas ao universo da tecnologia, da economia criativa. São processos de cocriação que não necessitam de um suporte presencial. Temos softwares de projetos de engenharia, de projetos arquitetônicos, que permitem que pessoas em países diferentes interajam de forma produtiva em torno de um projeto. Temos as novas profissões da economia criativa, aquelas ligadas ao ambiente virtual, à tecnologia, programação de aplicativos, programação de software, já indicavam que os deslocamentos na cidade não eram de todo necessários. Acho que a pandemia vai acelerar a incorporação de novas rotinas de trabalho na vida das pessoas e elas vão perceber que muitos deslocamentos, que eram feitos quase que por inércia, se tornaram desnecessários.

LEIA TAMBÉM 
Como será a vida nas cidades pós-pandemia? 10 visões e tendências para a vida urbana e espaço público
Como será o futuro de bares e restaurantes pós-pandemia? Veja 10 tendências
Como o coronavírus vai mudar nossas vidas: 10 tendências para o mundo pós-pandemia

Indo além da questão urbana, esse momento traz a reivindicação de novos direitos. Hoje, para ter acesso a muitos direitos sociais assegurados pela Constituição, como educação, saúde, lazer, proteção social, previdência, auxílios emergenciais, tudo isso depende de algo que ainda não incorporamos ao nosso ordenamento jurídico, que é o direito à internet.  Isso vai colocar a necessidade de pensarmos a internet como um direito. Porque a fruição de todos esses direitos vai depender do acesso à internet rápida, de qualidade.

Isso já ficou bem evidente com a dificuldade das pessoas para acessar o auxílio emergencial pago pelo governo e deve ficar ainda mais evidente com a volta às aulas de forma online. Já existe alguma movimentação de grupos reivindicando a internet como um direito essencial?

Essa é uma discussão que tem pelo menos uns dez anos. Ela é muito forte nos Estados Unidos, tem chegado com força em países que tem um Estado de bem-estar social mais avançado do que o nosso, mas sem esse senso de urgência que a pandemia traz. A dificuldade de acesso de milhões de brasileiros ao auxílio do governo, a benefícios que só estão disponíveis pela internet, evidencia que temos que colocar essa discussão como prioritária, como projeto de nação. Ele revela de forma muito cruel o quão desigual é a nossa sociedade. Até na mesma cidade convivemos com pessoas que têm internet super rápida e outras que vivem num ambiente de indigência digital.

Acho que na próxima década a gente vai encarar internet quase como encaramos água encanada, saneamento básico, luz. Como um serviço público acessível, com tarifa barata, gratuito para quem não pode pagar. Disso dependerá o nosso acesso a uma série de outros direitos que já são consagrados.

Como isso funcionaria na prática?

Hoje, a internet não é um serviço público, como água, luz, telefonia. Passa por ser reconhecida como um serviço básico, público, oferecido como um serviço essencial. Isso pode mudar a forma jurídica, a maneira como o Estado regula. É garantir que as pessoas que não podem pagar sejam integradas ao sistema.

Que outras mudanças legais podem acontecer na prestação de serviços públicos ou outras áreas?

Acredito que, no Direito, por exemplo, a transformação é definitiva. Fora dos tribunais, a produtividade durante a pandemia aumentou. Com a informatização dos processos, a demanda sobre infraestrutura vai diminuir sensivelmente e isso vai ter um impacto muito interessante na produtividade dos trabalhadores. Isso vai acontecer em outras áreas, o que também traz preocupação. As empresas vão perceber que têm setores administrativos muito pesados, que não são tão essenciais quanto elas achavam que fossem. E que funções que recrutavam muitas pessoas para o mercado de trabalho vão demandar menos. É um processo de chacoalhar o mercado de trabalho e que, até se acomodar, vai gerar insegurança, talvez desemprego.

No caso das cidades, algumas dinâmicas vão mudar muito. Para evitar aglomerações, vamos ter de mudar horários. Aquela cena clássica da estação da Sé às seis horas da tarde de uma terça, abarrotada, é uma coisa que não faz o menor sentido. As empresas vão ter que adotar horários diferenciados para evitar isso. Vamos ter que mudar a maneira como a gente pensa o adensamento, um bairro estritamente residencial, a cidade dividida em zonas, a cidade que demanda deslocamento, que demanda circulação de pessoas. Tudo isso vai ser impactado no mundo pós-pandemia. Tudo de forma a reduzir deslocamento, a reduzir a dependência do transporte público ou do transporte individual privado. Visando alcançar menor aglomeração de pessoas e mais adequado a esse novo mundo, cujo universo do trabalho estará mais conectado e menos presencial.

Você acredita que a pressão da sociedade por essas mudanças vá aumentar?

Fazendo um paralelo: tem toda uma discussão política sobre o coronavírus e me parece que tem se fortalecido a convicção de que a saída para a pandemia passa pelas soluções construídas pela ciência. Durante muito tempo nós fizemos política urbana desprezando bases fortes de evidências. Era mais baseada em intuição. Muitos planos diretores e leis de habitação foram decididos com base em dados que não tinham uma clareza exata se funcionariam ou não, porque não dialogavam com bases reais. Este é um momento bom para reafirmarmos que, qualquer que seja a decisão política sobre determinada política urbana, ela precisa ser baseada em dados, em indicadores e isso precisa ser acompanhado, monitorado, ajustado, para que produzam efeitos práticos na vida das pessoas. Isso tem muito a ver com cidades inteligentes. As pessoas pensam em cidades inteligentes pensando em semáforos, aquelas telas cheias de gráficos, números. A cidade aproxima as pessoas. Se ela for bem-sucedida em aproximar pessoas diferentes, permitir que as interações sejam ricas e construtivas e com isso colocar em desenvolvimento acelerado o processo de criação de soluções inovadoras, aí sim estamos diante de uma cidade inteligente. A cidade inteligente é a cidade que proporciona um ambiente generoso e amigável para a geração de novas ideias.

Além de cidades inteligentes, outro conceito é o de cidades sustentáveis. Como ele se insere nesse contexto?  

Nós trabalhamos com a sustentabilidade a partir do tripé econômico, social e ambiental. E esse é um assunto que ganha muito destaque no contexto da pandemia. São variáveis de tensão. De um lado, tem a necessidade de garantir a sobrevivência econômica das pessoas, mas de outra tem uma questão ambiental relacionada à saúde, que impede a circulação. Com isso estamos agregando maior complexidade à decisão. Não é fácil. Mas ninguém disse que administrar uma cidade seria fácil.

Como você vê o paradoxo entre a ideia, que vinha se fortalecendo, de que é bom morar no Centro, perto do trabalho, num lugar com maior adensamento, e a possibilidade de que, em função da pandemia, possa ganhar força o desejo de morar longe das aglomerações urbanas, para minimizar os riscos de contaminação? A pandemia pode despertar o desejo das pessoas de fugirem dos grandes centros urbanos?  Isso está acontecendo neste momento, por exemplo, em Nova York. Qual ideia você acha que vai ganhar força? Vir para o centro ou fugir dele?

Este é o desafio que está posto para os urbanistas e também para os arquitetos: que se debrucem sobre os desafios de projetos para o ambiente construído das cidades. Está posto, mas não tenho uma resposta pronta. Olhando para uma metrópole como São Paulo, há uma diretriz clara de adensar a cidade – isso que tem um efeito não só de proporcionar bem-estar, mas também benefícios econômicos. Temos uma população do Uruguai, 3,8 milhões de pessoas, circulando por dia só na Linha Vermelha do metrô, e existe o vírus, que prolifera em ambientes de aglomeração de pessoas. Isso vai ser um desafio e vai obrigar a olhar para as evidências científicas. É um processo que está em construção, não tenho resposta ainda. Precisamos dar um passo adiante no nosso discurso e verificar na prática se eles são capazes de resolver os problemas práticos das pessoas.

Menos achismo e mais investigação científica no futuro?

Menos achismo, menos experimentalismo e mais investigação científica. Lamentavelmente, no pensamento urbanístico, ainda engatinhamos no estudo baseado em evidências.

Clayton Melo

Clayton Melo

Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero com MBA em Marketing pela FGV, é curador cultural, analista de tendências, com formação na Escola Panamericana de Artes, e palestrante – já falou em instituições como Facebook, Google Campus, Mackenzie, ESPM, Cásper Líbero, Anhembi Morumbi, Campus Party e Festival Path. É especialista no desenvolvimento de projetos digitais de conteúdo, com estratégias de construção de audiências e comunidades, e experiência em Storytelling (ESPM), Inbound Marketing, Growth Hacking e Planejamento de Conteúdo para SEO. Neste espaço, escreve sobre tendências urbanas, futuro das cidades, inovação e cultura.