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As cidades terão que se repensar para lidar com novas pandemias, diz Paulo Saldiva

Entrevista com o médico Paulo Saldiva sobre a relação entre saúde e vida urbana no podcast Hackeando a Cidade

Entrevista com o médico Paulo Saldiva sobre a relação entre saúde e vida urbana.

Clayton Melo e Denize Bacoccina

Se as cidades fossem um corpo humano, as metrópoles brasileiras estariam doentes. Com obesidade pelo crescimento exagerado, calvície pela destruição da vegetação e bronquite por causa dos muitos anos respirando ar poluído. Essa definição é do médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da USP Paulo Saldiva, em seu livro Vida Urbana e Saúde, escrito ainda antes da pandemia e que mostra um diagnóstico ainda mais certeiro agora.

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A pandemia escancarou as desigualdades dentro da cidade, e embora todos os habitantes fossem susceptíveis à contaminação, por ser um vírus novo, as estatísticas mostram que o local de moradia fez muita diferença nos índices de mortalidade pela doença.

“Além dos profissionais de saúde, quem mais morreu foram os que mantiveram a cidade funcionando. Quem entregava comida, quem dirigia transporte, quem mantinha os comércios funcionando. E isso vale não só para o coronavírus, mas também para doença isquêmica do coração, infarto, pneumonia, tuberculose”, diz Paulo Saldiva nesta entrevista para o podcast Hackeando a Cidade. Ele diz que as pandemias se espalham com mais velocidade atualmente, por causa da facilidade de transportes, e que as cidades precisam se repensar para lidar com outras pandemias que venham a ocorrer.

Ouça o podcast no Spotify:

E leia os principais pontos da entrevista:

Cidades doentes

Quando as cidades começam a ser criadas, quando o homem passa de caçador coletor e domina métodos de produção, as pessoas começam a se fixar na cidade, que  tem condições de alimentar mais gente. O que a gente conhece por civilização foi feito por esse encontro de pessoas com especialização, ideias, grupos dialogando e criando coisas novas, complementares. Ao mesmo tempo, quando você põe muita gente próxima uma das outras e também com o saneamento básico precário nas cidades antigas, tem uma chance de transmissão de doenças que não era possível ao caçador-coletor.

Uma pandemia de grande intensidade não teria chance com um caçador coletor porque ela infectaria um grupo pequeno, que vivia separado. Nas cidades existe um intercâmbio muito mais intenso e com isso você desloca geograficamente as doenças. A pandemia é uma coisa de cidade. E também existe a desigualdade na cidade.

As pandemias na História

Acho que a primeira grande epidemia descrita foi a peste bubônica. Ela se origina na  Ásia e vem através do comércio para a Europa. Os ratos eram portadores, que vinham no navio. O rato adoecia e a pulga do rato, quando o rato morria, picava as pessoas e aí acontecia a transmissão. Só que demorou séculos pra virar uma pandemia, porque a mobilidade era menor. Já a varíola, que foi a segunda pandemia do século 18, demorou uns dois séculos pra pegar o mundo inteiro, foi trazida da Europa para a América. O cólera demorou 100 anos. Foi com o navio a vapor, porque é uma doença que tem uma mortalidade relativamente rápida. Aí vem a grande epidemia de transmissão humana que é a gripe espanhola, a H1NI, que demorou cinco anos pra pegar todo o planeta, pela movimentação de tropas. Nós tivemos uma em 2002, o SARS, na China. E o H1N1, da gripe espanhola, volta em 2009 e pega o mundo inteiro. Depois em 2012 teve o MERS, no Oriente Médio, e agora o SARS-CoV-2, em 2019.

Nós saímos de uma pandemia que demorava vários séculos e agora estamos com duas pandemias por década. Esse é o mundo globalizado. Em seis, sete semanas já estava no mundo inteiro. A variante delta, quatro semanas depois estava em mais de 90 países, mostrando que hoje o vetor deixou de ser o mosquito e passou a ser o avião.

Gripe espanhola e Covid-19

O que aconteceu com a gripe espanhola foi marcante. Não se sabe exatamente quantos morreram no Brasil, mas no mundo foram 50 milhões de pessoas. Agora morre gente, mas também sobrevivem pessoas que naquela época teriam morrido. A letalidade do SARS-CoV-2 é mais ou menos 15 vezes mais do que o da gripe do H1N1. Se esse vírus tivesse aparecido em 1918, nós teríamos uma mortalidade 15 vezes maior do que temos hoje.

Assista no YouTube:

Como as cidades podem se preparar, ou se prevenir, para outras pandemias?

Quando eu quando estudava medicina, o advento do antibiótico e das vacinas fazia supor que as febres fossem doenças de gente que morasse em lugares distantes. Aí apareceu um vírus novo, o HIV, que começou a desafiar essa ideia, porque tinha resistência aos antibióticos. E agora começam os vírus novos, que saem de um animal do espaço periurbano e pulam para o ser humano. Os coronavírus estão rondando a gente desde os anos 1980.

Com a vacina, não vamos discutir primeira, segunda ou terceira dose. Nós vamos discutir “n” doses, possivelmente levando em conta os tipos, os subtipos, as variantes que mais circularam no mundo. Vamos ter que tomar várias vacinas. Como a cidade se prepara pra isso? Ela vai ter que se repensar. Nós vamos ter que, em escala global, pensar em vigilância epidemiológica molecular. Temos que criar estruturas globais muito mais eficientes de detecção global e de contenção.

Não basta só a vacina. Temos que reaprender essas estratégias. Levar em conta a vulnerabilidade social. Não é só faixa etária. Vamos ter que aprender muito. Vamos ter que modificar o transporte, o tipo de transporte, as lotações. A disseminação no transporte coletivo foi muito importante. Vamos temos que reaprender, aprender com os erros que a gente cometeu.

A pandemia escancarou a desigualdade

Além dos profissionais de saúde, quem mais morreu foram os que mantiveram a cidade funcionando. Quem entregava comida, quem dirigia transporte, quem mantinha os comércios funcionando. Essas pessoas eu encontro lá na minha mesa de autópsia. E isso vale não só para o coronavírus, mas também para doença isquêmica do coração, infarto, pneumonia, tuberculose. A variação de risco de mortalidade infantil por pneumonia é quase 15 vezes. Varia conforme o CEP, na mesma cidade, com o mesmo sistema de saúde.

Ainda não se decidiu se saúde é um bem comum ou uma coisa que tem que ser vendida. Essa é uma questão não só de saúde, de planejamento urbano, mas tem um componente de humanidades, de ética, de princípios. Tem que começar a repensar o mundo e diminuir as barreiras.

A evolução da vida na cidade

Eu acredito que a gente pode melhorar e eu acho que minha geração não conseguiu, mas esse pessoal novo vem com uma outra cabeça. E é capaz de fazer uma cidade mais sustentável e consequentemente mais saudável.

O mercado imobiliário traduz bem isso. O valor do imóvel dependia, entre outras coisas, se tinha guarita na rua, número de vagas na garagem e de quartos. Agora isso deixou de ser tão importante na comparação com a proximidade do meio de transporte público ou a proximidade do parque.

A cidade de São Paulo, nesse particular, é um laboratório de convivência. Todo o zoológico do Criador anda pelas ruas da cidade de São Paulo. É uma cidade que tem muita personalidade, muitas pessoas, muitos pequenos detalhes que você descobre somente quando se anda por ela.

São Paulo é muito pujante. Aliás, as cidades brasileiras são muito pujantes.

Sucesso da vacinação no Brasil

O número de infectados foi tão grande no Brasil que todo mundo conhece alguém que pegou ou alguém que morreu muito próximo ou da família. A aceitação da vacina e do uso de máscara foi crescendo à medida que a pandemia se contrapõe ao discurso de negacionismo. Então a realidade superou a ficção. O Brasil hoje tem uma grande adesão ao uso de máscara e a maior aceitação de vacinas em relação ao mundo, mas isso foi basicamente criado a partir da do drama que a gente viveu principalmente no início desse ano.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

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