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Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez: a cultura híbrida vai expandir o conceito de cidade

Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, fundadores da premiada Cia de Teatro Os Satyros, falam sobre a reinvenção digital do teatro e os impactos da cultura híbrida na relação arte e cidade

Entrevista com Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez, fundadores da cia de teatro Os Satyros

Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Clayton Melo e Denize Bacoccina

Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez são artistas múltiplos, com uma atuação que vai muito além das peças de teatro e filmes que escrevem, atuam, dirigem e produzem. Os fundadores da companhia de teatro Os Satyros têm também a ambição de pensar a cidade e, na prática, como a arte pode transformar territórios. Fizeram isso na primeira sede que tiveram, depois na temporada que passaram na Europa, no começo dos anos 1990, quando se instalaram numa região desvalorizada de Lisboa e conseguiram transformar o local.

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Na volta ao Brasil, no fim de 1999, ocuparam um espaço na Praça Roosevelt, então escura e violenta, esquecida pelo poder público e abandonada pelos paulistanos, apesar do histórico ligado à cultura. Com suas peças, começaram a atrair um público que não estava mais acostumado a frequentar o centro da cidade, influenciaram o poder público e conseguiram a instalação de uma escola de teatro pelo governo do Estado, além da reforma da praça pela Prefeitura.

Vinte anos depois a praça é outra, frequentada por pessoas de toda a cidade, e Os Satyros não só continuam com o teatro (fechado a apresentações presenciais desde o início da  pandemia) como recuperaram outro patrimônio cultural da cidade. O Cine Bijou, frequentado desde os anos 1970 por gerações de cinéfilos, vai retomar suas atividades. Online inicialmente, com o Festival Satyricine Bijou, em setembro, e depois presencialmente quando for possível.

Em mais de 30 anos de atividade, Os Satyros produziram mais de 100 espetáculos, se apresentaram em 20 países e receberam 53 prêmios – incluindo os maiores do teatro brasileiro, como APCA, Shell, Mambembe, APETESP e Governador do Estado do Paraná. No ano passado, foram pioneiros no teatro digital e agora se apresentam, desde São Paulo, a plateias do mundo todo.

Neste episódio do podcast Hackeando a Cidade, eles contam como veem as transformações na cultura, na cidade e na sociedade.

Ouça o podcast:

Leia no texto abaixo os destaques da entrevista, que pode ser vista no YouTube e ouvida no Spotify.

O início na Praça Roosevelt

Ivam Cabral No ano 2000, quando a gente pegava um táxi na Avenida Paulista e falava “queremos ir pra praça Roosevelt”, eles levavam a gente para o Brás porque existia uma Praça Roosevelt no Brás. E a Praça Roosevelt do centro da cidade, da Igreja da Consolação, a Praça Roosevelt que a gente conhece hoje, não existia. Era um território abandonado pelo poder público, abandonado pela cidade, um lugar cheio de concreto, um lugar muito escuro e que tinha muitos problemas de criminalidade, muito tráfico, muita prostituição. E a gente quis chegar na praça Roosevelt pra colocar em prática uma teoria que nós temos, que a arte pode modificar entornos, principalmente a arte do teatro, que é da artesania. E a gente conseguiu. O que aconteceu na Praça Roosevelt foi a criação de um movimento artístico que foi além dos Satyros, foi além do teatro. Pegou o pessoal da literatura, do cinema, das artes visuais, da música, dos skatistas que estavam na praça antes da nossa chegada. Eles foram muito importantes nessa transformação. E a gente conseguiu de maneira coletiva modificar esse entorno e fazer com que o poder público depois viesse atrás pra corrigir esse abandono de décadas. E a nova Praça Roosevelt surge em 2012, do jeito que a gente conhece hoje. E a arte consegue jogar luz pra esse território.

As mudanças na Praça Roosevelt (pré-pandemia)

Rodolfo Garcia Vázquez – Houve um processo de gentrificação bastante intenso.  Quando nós chegamos na praça, por exemplo, existiam alguns hotéis de prostituição de travestis, basicamente, e vários prédios abandonados, inclusive onde é hoje prédio da SP Escola de Teatro. Houve uma valorização da região por causa da ação principalmente dos teatros, que trouxe segurança e  começou a despertar interesse de uma classe média que começou a comprar imóveis na região. Esse processo foi muito forte. Chegou até um momento que nós pensamos em sair. Mas aí chegou a escola e reforçou nosso vínculo com a praça.

Tradição cultural da Praça Roosevelt e Cine Bijou
 
Ivam Eu acho bacana a gente lembrar que o espaço também tem memória. Existe aí uma memória e a gente sabia, mas nem contava com isso. A Praça Roosevelt foi o berço da bossa nova paulistana, o berço do cinema novo, o berço do teatro, o Teatro de Arena está ali do lado. Tem um lado simbólico muito importante que também nos interessa. Ultimamente inclusive é o lugar do debate público. As coisas começam ou terminam na Praça Roosevelt.

Rodolfo – E isso está acontecendo também com o Cine Biju. A partir do momento que a gente começou a administrar o local, também começou a ficar visível essa memória. Estamos inclusive organizando um festival, o primeiro Satyricine Bijou, trazendo filmes inéditos brasileiros de cinema independente. Vai ter premiação, tem um super júri, uma estrutura e todos os artistas com quem a gente conversa falam “meu Deus, o Cine Bijou tá voltando”. A memória daquele espaço que é recuperada.

Quando a gente ficou sabendo que o Cine Bijou estava vazio, que poderia ser alugado, pensamos “meu Deus, esse espaço tem que ser mantido, tem que ser recuperado, não pode ser abandonado” E oferecemos para as secretarias de Cultura do município e do Estado e os órgãos públicos não se sensibilizaram. Não entenderam a importância daquilo. Então nós acabamos alugando o espaço. Estamos há dois anos pagando aluguel por um espaço fechado porque a gente sabe da importância social e cultural desse espaço para as futuras gerações, inclusive. Porque o cinema brasileiro não tem onde se expressar atualmente. Então ter um espaço para o cinema brasileiro independente poder respirar e alcançar o público é uma coisa muito importante pra nós. Eu acho que é muito louco a gente ocupar um espaço que deveria ser um espaço da esfera pública.

Veja aqui a íntegra no YouTube:


Cultura como um ato de resistência

Ivam – A gente também estava refletindo internamente sobre esse processo. Temos muitos momentos assim na nossa trajetória. Mas a gente sempre teve consciência de que era um processo de muita resistência porque o tempo inteiro tudo sempre disse não. E agora na pandemia, quando tudo parecia muito cruel, a gente se reinventa.  E isso acontece porque é esse ato de resistência de que não parar de trabalhar. É um ato político.

Rodolfo Eu acho que vocês devem sentir o mesmo que nós, né? Isso também acontece com os jornalistas. É muito estranho quando você tem um poder central de um país, a figura máxima dum país que fala explicitamente contra uma classe. É uma coisa muito pesada. Muito pesado pro jornalista, pro artista, ouvir isso.

Volta ao presencial

Ivam – Na pandemia, a gente reconheceu uma outra fase, descobriu que poderia trabalhar o teatro digital.  E fomos para todos os cantos do planeta
dialogando com todo mundo, com artistas improváveis e isso foi sensacional. Voltar ao teatro dos Satyros é um pouquinho mais complicado porque o nosso espaço é muito pequenino. A gente quer muito, mas ainda precisa entender como vamos fazer isso.

Por outro lado, a gente descobriu o teatro digital e também não queremos parar. Hoje, por exemplo, estávamos fazendo uma oficina e tinha gente do Acre, do Rio Grande do Norte, do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo. Eu não quero perder isso. Eu acho que conciliar essas duas coisas, trabalhar nesses dois lugares, vai ser fundamental.

Rodolfo – Eu sou bem otimista. Eu só acho que a transição vai ser meio estranha. Mas eu acho que depois dessa transição vamos viver uma experiência louquíssima enquanto Humanidade, porque vamos descobrir que, além do espaço físico, existe um espaço digital pra gente ocupar. Já estávamos vivendo o espaço digital, mas a gente não tinha consciência do potencial, agora descobrimos que é gigantesco. Vai chegar um momento em que a pandemia vai estar “sob controle” e quando isso acontecer, ela terá  trazido um olhar novo pro mundo, para o potencial das nossas relações, tanto artísticas quanto pessoais, profissionais. Vai ser um outro mundo.

A acessibilidade do digital

Ivam Eu acho esse aspecto fundamental. A arte não sabia que podia alcançar isso. A Arte de Encarar o Medo teve um público de 27 mil pessoas em 100 apresentações. É muito incrível. Mas eu não tenho esse otimismo do Rodolfo. Eu não acho que essa transição vai ser fácil. Acho que a gente vai viver assombrado por esse vírus e suas variantes durante muito tempo e acho que não vai depender da gente o querer ir e vir. Mas a gente vai ter que reconstruir, vai ter que arregaçar as mangas, mesmo morrendo de medo, vai ter que que ocupar as cidades, as calçadas. Isso vai acontecer inevitavelmente.

Pioneirismo no teatro digital

Rodolfo – A gente foi pro digital imediatamente e o Ivam tem que levar os louros por isso.  Assim que fechou o Ivam, que estava em cartaz com uma peça, falou: “A gente não pode parar”. Eu falei: mas Ivam, como que a gente vai fazer? “Vamos transmitir o monólogo pelo YouTube”. E daí nós fomos,  pegamos o celular, o laptop, e fomos transmitir pelo YouTube o monólogo do Ivam. Assim começou nossa aventura digital.

Ivam É que dia 27 de março era o Dia do Teatro. Quando a gente entrou, a preocupação nossa era “mas a gente não vai comemorar o Dia do Teatro?” Era a primeira vez desde que eu comecei a fazer teatro que o dia 27 de março não seria comemorado. A gente precisava fazer alguma coisa.

Rodolfo – O que é engraçado é que a gente não sabia como fazer. Então a gente pegou lá no corredor do apartamento, cheio de livros, e tal, eu fiz umas traquitanas lá nas luzes, a gente ligou a câmera.

Ivam – Está no YoTube: “Será que já está sendo transmitido?”. A gente deixou gravado porque é um documento de um tempo, é histórico.

Rodolfo – Aí veio a segunda fase. O Pimentel, da Sympla, assistiu a peça e ficou super tocado. Ele ofereceu uma sala do Zoom pra gente. Não sabíamos nada dos recursos, só aprendemos a linguagem do Zoom mesmo umas duas semanas antes do ensaio aberto, no dia 20 de maio. Ficamos mais de um mês pensando como a gente ia fazer, se ia ser gravado, se não ia e foi aí que descobrimos a linguagem. E A Arte de Encarar o Medo estreou no começo de junho. Ou seja, a gente não parou em nenhum momento.

Aí começaram os ataques. Eu acho que os ataques foram muito fortes quando a gente assumiu o nome teatro digital. Misteriosamente, depois de alguns meses estava todo mundo fazendo. Inclusive pessoas que nos atacavam muito.

O futuro é digital? Híbrido?

Ivam – Eu acho que sim. O teatro sempre teve onde estavam as pessoas. Ele sai de uma estrutura física, de um lugar, vai pra rua, vai pra igreja, pro palácio, pras salas das casas, vai pros hospitais, vai pras escolas, vai pra todos os lugares. E era inevitável que ele chegasse à internet. Porque é um espaço de compartilhamento. Então, sim, eu acho que nós não vamos querer perder o diálogo do pessoal que a gente encontrou do Acre, da Amazônia, do Rio Grande do Sul, do menino que assiste todas as nossas peças de Santa Catarina. O teatro que a gente sempre trabalhou e conhece, é óbvio que ele não vai acabar. Mas eu acho que a gente tem que combinar coisas, porque é bacana também trocar experiência com gente muito diferente de você.

Inclusive agora vamos ter apresentação em Calcutá. Não vou querer perder essa oportunidade porque pra viajar pra Calcutá num grupo de 20 pessoas era muito difícil e agora a gente pode estar lá. Acho incrível. Nas nossas sessões tivemos público de todos os lugares. Até uma pessoa que estava no hospital e ia ser operada no dia seguinte.

A cidade a partir da pandemia

Ivam – A pandemia me deu outra cidade. Embora eu fosse um habitante de Parelheiros já há muito tempo, ter ficado aqui desde março do ano passado me deu outra ideia de cidade. E eu passei a amar muito mais a nossa cidade. A pandemia não deu trégua pra essa questão, principalmente pra gente que vive ali no centro, na praça Roosevelt. O povo continuou indo, insistindo. Por um lado eu ficava indignado com essa postura, por outro lado eu falava “que legal que a praça não foi abandonada”. Tinha ali a senhorinha do cachorro, a escola infantil, os skatistas. Comecei a observar a cidade dessa maneira. Eu achei a cidade ordeira, porque a partir de algum momento todo mundo com máscara, todo mundo civilizado, todo mundo se cuidando. Havia as exceções, a praça mostrou muitas exceções. Mas em geral achei as pessoas respeitando de verdade o horror que a gente estava vivendo.

Que a pandemia traga isso pra gente, que desperte isso, essa coisa do coletivo. Acho que o uso da máscara, o distanciamento, tudo que a gente foi aprendendo com a pandemia, foi nos direcionando no sentido de pensar
como ser cidadão hoje, como caminhar no mundo hoje. Isso mostra que a gente pode, sim, reconstruir esse tempo, reconstruir a cidade. Aí sim eu vejo um futuro bacana, porque eu acho que a gente tá com muita saudade desses lugares. Assim que a gente puder, mesmo com alguma dificuldade, vamos voltar a ocupar esses nossos espaços. Eu não vejo a hora disso acontecer.

Rodolfo – Eu vejo que a cidade vai ser pensada de outra forma. Eu posso estar de forma presencial ou digital. Esse espaço que o Satyros vai ocupar de forma digital, por mais que o digital esteja espalhado pelo mundo inteiro, as pessoas sabem que o Satyros é de São Paulo e da Praça Roosevelt. Já estamos pesquisando o teatro ciborgue há mais de dez anos. De alguma forma, no espaço digital, você localiza as coisas. O que vai acontecer é que você vai localizar os espaços de convívio e tudo, mas sempre trazendo junto a cidade. A cidade vai se expandir. Ela vai ter uma dimensão física, territorial, geográfica e uma dimensão digital, que é um outro território, é outra geografia. E o cruzamento dessas duas dimensões vai reconfigurar o que a gente entende por cidade.

Ivam – Acho bacana isso, porque todas as vezes que a gente entrou em cena, no teatro digital, a gente carregou a Praça Roosevelt com a gente. Era inevitável. Todo mundo que vinha nos assistir falava, tinha uma reflexão sobre a praça, sobre o nosso espaço. Isso é simbolicamente importante, porque mesmo estando no território digital, os sátiros tem sua raiz na Praça Roosevelt e vai disseminar essa ideia pro resto do país.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

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Denize Bacoccina

Denize Bacoccina

Denize Bacoccina é jornalista e especialista em Relações Internacionais. Foi repórter e editora de Economia e correspondente em Londres e Washington. Cofundadora do projeto A Vida no Centro, mora no Centro de São Paulo. Aqui é o espaço para discutir a cidade e como vivemos nela.