A Vida no Centro

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Tempo de leitura:5 minutos

A arte urbana e a arte de provocar a cidade

Como os artistas e produtores culturais Fernanda Bueno e Kleber Pagú transformam a cidade em plataforma para arte urbana e ativismo

Clayton Melo e Denize Bacoccina

Foi pintando o asfalto da Avenida Paulista, no dia 20 de novembro de 2020 que Fernanda Bueno e Kleber Pagú comemoraram o aniversário de casamento. Fernanda é bailarina do Balé da Cidade e Pagú é o produtor de vários murais importantes de São Paulo entre eles. Juntos eles lideram o coletivo Nós Artivistas, que faz ativismo por meio da arte e tem a arte urbana como ponto de partida para provocar.

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“A gente provoca e se autoprovoca. Como produtor, como artista, eu e a Fernanda não temos condições de fazer basicamente nada, a não ser provocar. E a provocação também pode ser uma profecia. A provocação é uma ideia de falar que não está bom e que poderia ser diferente”, define Pagú nesta entrevista ao podcast Hackeando a Cidade.

“Eu acho que eu faço arte urbana desde o dia que eu comecei a sair lá de Guaianases e cruzar a cidade pra começar a fazer as aulas de dança na Escola de Dança do Teatro Municipal”, diz Fernanda, que fala ainda sobre a experiência de ter trabalhado com Ismael Ivo, bailarino, coreógrafo e ex-diretor do Balé da Cidade, que morreu recentemente de Covid-19.

Ouça aqui ou no botão abaixo o podcast com e siga nosso canal no Spotify.

E leia aqui um resumo da entrevista:

O começo na arte urbana

Fernanda – Eu acho que faço arte urbana desde o dia que comecei a sair lá de Guaianases e cruzar a cidade pra começar a fazer as aulas de dança na Escola de Dança do Teatro Municipal. No percurso que fazia de trem, eu ficava vendo a cidade se modificar conforme mudavam as estações e eu ficava criando. Ah, esse bairro é assim, aquele bairro é assado, isso tem aqui, não tem lá. Ficava quase como um quebra-cabeça, que é uma coisa que eu adoro, ficar juntando as peças, fazendo esse grande mosaico. E minha primeira formação é como bailarina na Escola de Dança. A minha formação como artista é totalmente pública também, escola de dança, centros culturais, fui devorando o que que a cidade tinha pra me oferecer.
E no meu percurso eu fui desenvolvendo outras atividades, como coreógrafa, estou me formando em jornalismo. E no meio disso eu encontrei o Pagú e juntos começamos a desenvolver outros projetos mais efetivamente na rua, com produção de painéis, produção de artistas, desenvolvendo projetos nossos como o Nós Artivistas.

O trabalho artístico

Pagú – Sobre o que a gente faz, eu tenho uma sensação de que a primeira coisa que a gente faz é descobrir a nossa própria história. Não só a minha história, mas a nossa história em conjunto, porque vai envolver a história do artista, a história daquele prédio, a história daquele lugar que a gente tá propondo aquela obra. E acaba envolvendo a história da própria cidade, de como a gente olha a cidade, de como a cidade oferta a arte e cultura para as pessoas e nessa caminhada a gente vai fazendo o que para muitas pessoas resulta num painel colorido lindo, maravilhoso e de bastante descobrimento.

É isso que a gente faz. A gente provoca e se autoprovoca. Porque, como produtor, como artista, eu e a Fernanda não temos condições de fazer basicamente nada, a não ser provocar. E a provocação também pode ser uma profecia. A provocação é uma ideia de falar que não está bom e que poderia ser diferente.

Arte urbana

Pagú – O Museu de Arte de Rua (MAR) foi criado em 2017, na gestão Dória, pela Secretaria Municipal da Cultura, quando ele apagou os grafites da Avenida 23 de Maio e houve um grande burburinho na cidade, obviamente, porque é uma violência. Como solução, por iniciativa dos artistas, foi criado o MAR.

E o MAR busca não só o investimentos em arte urbana, mas o reconhecimento desses trabalhos. O MAR é uma célula, é um projeto de arte urbana. Só que a arte urbana da cidade é enormemente maior, porque é tudo que está acontecendo de arte na cidade, no espaço público, não é uma gaveta do que tá acontecendo nem uma gota no oceano. É tudo que tá acontecendo.

A nossa luta agora é para aprovar o projeto de lei 379/21, que institui a cidade de São Paulo como uma galeria de arte a céu aberto. Toda a cidade de São Paulo é uma galeria. Do ponto de vista de atrativo econômico, de atrativo turístico, da percepção da sociedade de que nós estamos num lugar que respira arte, cultura, isso é extremamente impactante pra cidade. É um título pra cidade. O Rio de Janeiro é a cidade maravilhosa. São Paulo é a cidade da arte.

O Minhocão, por exemplo, tinha 12 painéis até o começo de janeiro. De janeiro para cá chegamos a 47 murais. É impossível a pessoa andar no Minhocão hoje e não perceber que ali é uma galeria de arte. Não precisa ninguém dizer, as pessoas percebem.

Assista à entrevista no YouTube


Ismael Ivo e o Balé da Cidade. Abertura dos espaços para toda a cidade

Fernanda – Em 2017 eu sugeri o nome do Ismael Ivo para dirigir o Balé da Cidade. Eu nem o conhecia pessoalmente, conhecia o grande artista, o grande profissional, mas não tinha nenhuma relação pessoal com ele. Ele foi votado pelos bailarinos, essa lista subiu e a gestão trouxe o Ismael.

E quando foi convidado, ele me ligou pra agradecer. E quando me ligou eu pensei “que cara incrível”. Com tudo que ele já é, não precisava me agradecer. É a humildade e o entendimento dele do que é de fato fazer arte. E o que ele ofereceu pra mim, ele ofereceu para a companhia inteira: liberdade. Sejam quem vocês quiserem, façam, por favor, saiam de dentro de vocês, venham. O tempo todo ele estava convidando a gente pra sair de dentro de nós mesmos e ir além. O que ele buscava pra ele, né? Ele buscava esse outro lugar.

Com toda certeza ele sofreu muito preconceito e racismo, porque a gente sabe que na dança clássica não havia pessoas negras e ele deu a volta no mundo. Ele não teve o reconhecimento do Brasil pelo trabalho dele, por tudo que construiu, tantas portas que abriu. Ele abriu muitas portas dentro do teatro, quem enxergou a porta aberta, quem observou um caminho aberto, entrou.

O Ismael incomodava porque ele achava solução. Ele colocou a ocupação dentro do Teatro Municipal, chamou o balé de Paraisópolis pra dançar no Saguão do Teatro Municipal. Ele incomodava, é lógico. É lógico que ele sofreu racismo.

Ismael Ivo
Ismael Ivo, diretor do Balé da Cidade, no Theatro Municipal

Legado de Ismal Ivo

Pagú – Ele é um exemplo do que o racismo estrutural faz no Brasil. Eu passei muitas vezes em frente ao Municipal sem sequer saber que ali era o Teatro Municipal. Eu posso dizer que entrei a primeira vez no Teatro Municipal de São Paulo na gestão e por convite do Ismael Livro. Então, eu sou um legado da gestão dele.

Nós Artivistas contra o racismo
Pagú – Eu tive a oportunidade, também a convite do Ismael, de ir a Viena e acompanhar um projeto maravilhoso que é o ImPulsTanz (projeto criado por Ismael quando ele trabalhava na Europa), que enriqueceu muito minha experiência pra o que eu desejo de arte aqui em São Paulo.

O Nós Artivistas é um grito, naquele momento (a primeira ação, em frente ao Masp, em 20 de novembro de 2020) o grito contra o racismo, mas certamente vocês ouvirão esse grito de novo, porque é um grito contra as violências, contra os apagamentos, que são diversos. O racismo é um. A gente quase conseguiu realizar outras intervenções. No dia 6 de setembro, algumas horas antes do dia 7 de setembro na Paulista, a gente iniciou uma intervenção que foi interrompida. Quando houve uma questão de assédio lá na Alesp, nós ensaiamos uma intervenção sobre a questão do machismo, do feminicídio, de todas essas questões que permeiam.

Então, ele é um grito. O racismo está presente cotidianamente, como o machismo está presente cotidianamente, como nós temos várias outras estruturas postas diante de nós. E essas estruturas são justamente essas empenas. São esses grandes muros que a gente precisa olhar pra eles e criar formas de escalar ou de descer neles e transformá-los. Por isso a gente fala que não é sobre colorir. É uma necessidade urgente e real de uma sociedade que continua morrendo, exterminada por várias políticas que abandonam essas pessoas conscientemente.

Então o Nós Artivistas surgiu com essa questão do racismo estrutural, no dia 20 de novembro, no mesmo dia que eu conheci a Fernanda alguns anos antes. E a gente comemora o nosso aniversário de casamento fazendo essa intervenção. A gente busca fazer uma espécie de um retrato do Brasil real, do Brasil que a gente está propondo, às vezes denunciando algo que a gente está vivendo. Logo na sequência de escrever “Vidas pretas importam”, que é uma denúncia mas também é uma esperança, a gente escreveu dois dias depois “O futuro é uma mulher preta”. E isso é muito mais um desejo, uma esperança. E aí, de repente, temos nas Olimpíadas a Rebeca brilhando e na Secretaria de Cultura a Aline Torres.

É quase como se naquele dia em que escrevemos “O futuro é uma mulher preta”, estivéssemos jogando uma semente naquele lugar. E é claro que talvez possa não ter nenhuma conexão, mas era esse o desejo.
Então a gente está pintando a cidade, escrevendo coisas que a gente deseja. Talvez a gente consiga viver tudo isso em algum momento. É aí que está a arte de provocar.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

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