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Vamos abrir essa gaiola de ouro, diz o diretor do Balé da Cidade sobre o Theatro Municipal, em entrevista ao A Vida no Centro
Por Denize Bacoccina,
com colaboração de Clayton Melo
Alguma coisa acontece no Theatro Municipal de São Paulo. O teatro centenário, projetado à semelhança da Ópera de Paris e construído no início do século 20 para dar à elite paulistana, enriquecida com a exportação do café, um espaço à altura de suas viagens à Europa, manteve durante muito tempo um ar aristocrático. Um espaço que, apesar de sustentado pelo dinheiro público, devia ser reservado aos poucos que tivessem capacidade de entender as músicas, óperas e balés apresentados lá dentro. Nos últimos anos, porém, isso vem mudando. Concertos da orquestra sinfônica têm um espaço reservado para serem filmadas e compartilhadas nas redes sociais, elencos operísticos conversam com o público depois do espetáculo e as apresentações do corpo de baile têm tido casa cheia. Esta última é obra do bailarino e coreógrafo Ismael Ivo, diretor do Balé da Cidade desde janeiro de 2017, quando aceitou o convite do então prefeito João Dória e aceitou o convite para trocar a Alemanha, onde havia se estabelecido, pela sua São Paulo natal.
“Não estou aqui só para posar de diretor do Balé da Cidade”, conta ele nesta entrevista ao portal A Vida no Centro, ao explicar por que decidiu voltar para a cidade. “Se estou neste teatro, no Centro de São Paulo, agora é a minha vez de imprimir minha marca, de deixar um legado de arte e engajamento. É isso o que eu prezo na minha gestão”, afirma.
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Ismael ficou 30 anos fora do Brasil, entre Estados Unidos e Alemanha, onde teve também uma bem-sucedida carreira como coreógrafo e diretor do Teatro Nacional Alemão, em Weimer. Foi ainda um dos fundadores do festival de dança contemporânea ImPulsTanz, em Viena, considerado um dos maiores do mundo. Quando recebeu o convite, tinha uma outra oferta, na Suíça, mas ele preferiu voltar para o Brasil.
No Balé da Cidade, Ismael Ivo busca fazer com que o grupo seja de fato o balé “da cidade”. Isso significa ter diversidade racial e de classes sociais tanto no palco quanto na plateia. “Quando eu entrei havia apenas um bailarino negro, mas agora já vão ser sete”, conta ele na entrevista a seguir:
A Vida no Centro – Por que depois de tantos anos no exterior, por que você aceitou este convite e voltou ao Brasil?
Ismael Ivo – Foi uma oportunidade de retornar ao meu país, à cidade onde eu nasci. Eu tenho uma identificação com São Paulo. Não queria ter nascido em outro lugar. São Paulo é um desafio, é uma cidade que desafia a encontrar caminhos. Não proporciona distrações fáceis, como o Rio, com aquela beleza natural, ou a Bahia, com aquele charme. São Paulo me exigiu aprender, querer, realizar. Nós, paulistas, temos um drive, uma coisa muito ativa, uma energia. E isso produz a melhor cultura do país, a melhor arte, o maior elo entre vida, cultura, produção cultural, ideias. São Paulo é um celeiro de ideias. Não é à toa que o Theatro Municipal foi o berço do Modernismo. O próprio Tropicalismo não nasceu na Bahia, mas aqui, com os baianos. Um dos legados do Modernismo, do Tropicalismo, é o próprio movimento paulista de Arrigo Barnabé, Itamar Assunção. Eu trabalhei com o Arrigo. Fizemos shows, dancei no show Clara Crocodilo. São Paulo tem esta coisa, este olhar para o futuro, de explorar ideias de vanguarda. Quando eu decidi vir para cá, em vez de aceitar o convite da Ópera de Gotemburgo, na Suíça, sabia que os tempos iam ser difíceis. Mas não me avisaram que eram tão difíceis. (risos).
Enfim, eu comecei a conversar com as pessoas e amigos dizendo que especialmente em tempos difíceis a própria arte tem que se provar necessária. Tem que passar todas as barreiras, as dificuldades, as censuras. Perdemos o Ministério da Cultura. A Lei Rouanet é revista, é criticada. Mas nós já passamos por tudo isso. E eu acho que a arte, a cultura, resistem. Principalmente porque tem uma conexão muito clara entre arte, cultura e educação. A própria arte precisa semear a audiência do futuro e dizer que é quase um fenômeno de saúde da população. Com o avanço tecnológico, que é benéfico, a tendência foi as pessoas se tornarem introvertidas. Isso vai deixando a sociedade doente. A arte é uma janela de escape, onde as pessoas podem abrir o seu sensor emocional para a vida. E neste sentido, dentro desta casa, o que tem acontecido, e eu abracei imediatamente, é o Theatro Municipal Portas Abertas. Para se tornar mais acessível a todos os setores da população.
Veja galeria de fotos do Theatro Municipal:
Você já vem fazendo isso há algum tempo. Que resultados consegue notar?
É muito incrível, porque na temporada passada, quando ainda estávamos na sede provisória (atualmente o balé está sediado na Praça das Artes), eu tive um projeto educacional dentro do Bale da Cidade onde nós convidávamos grupos de jovens e adolescentes, principalmente das zonas mais carentes, para fazer um dia dentro do Balé da Cidade. Eles ficavam o dia inteiro vendo aula, vendo ensaio, conversando comigo, conversando com os bailarinos. Tivemos 3 mil adolescentes. Um dia na vida de um adolescente aqui dentro vendo essas coisas muda a vida dele. Você começa a dar outro tipo de sonho e perspectiva para essas crianças. E além disso em toda estreia eu convido os grupos de inclusão. Casais LGBT, marcha das mulheres negras, grupos de trans, grupos de ocupação. A mãe de uma menina me encontrou e disse que a filha esteve lá com o grupo, e que estava encantada, que ela ganhou uma vaga na escola de música de Minas Gerais. Ela disse que faz faxina, mora na ocupação e agora a filha vai estudar música. Estamos acolhendo esses grupos aqui dentro. Todo mundo passa em frente ao Theatro Municipal e pensa que não é para eles. Vamos abrir essa gaiola de ouro.
Na Europa é muito grande a frequência a teatros. E aqui também tem espetáculos gratuitos. A barreira não é apenas o dinheiro, não é?
As pessoas pensam que não é para elas, que não estão bem vestidas, que vão olhar feio, torto. Nós começamos a reverter isso. A fazer várias ações nas escadarias, fora, para a cidade. E o próprio programa do Balé da Cidade começou um movimento que a gente chamou de Corpo Cidade. Ele preserva a sua qualidade artística, mas ele responde à cidade. É o balé da cidade de São Paulo.
Isso é pela temática?
Várias ações. Quando eu cheguei no balé, eu vi um bailarino negro. Isso não representa a cidade. Agora já temos cinco bailarinos negros, vamos ter sete. Eu comecei a mudar o quadro.
Você começou a fazer uma busca ativa por essas pessoas ou elas já procuravam o balé e não eram selecionadas? Como foi o processo?
Alguns, sabendo que eu tinha ocupado a posição, se arriscaram a se inscrever e disseram que antes nem tinham coragem de tentar. As pessoas criticam cotas. Mas é uma reparação histórica. Na primeira temporada, o próprio prefeito que me convidou, cometeu um erro e começou a apagar os grafites da cidade. Peguei os bailarinos, fomos para o Beco do Batman, filmamos e realizamos um espetáculo que se chamou Risco. Alguns disseram que eu estava pulando numa caldeira. Eu disse que se ele me convidou ele sabia como eu sou e eu não posso não ser fiel a uma verdade artística. No fim os próprios grafiteiros, quando ficaram sabendo, vieram ver o espetáculo. E vieram me encontrar depois com lágrimas nos olhos. “A gente nunca pensou que a nossa arte pudesse estar no Teatro Municipal”. E pediram ingressos para trazer a família.
O Balé da Cidade, que está fazendo 50 anos, fez uma opção de não termos um balé clássico, mas uma companhia de vocação contemporânea. Seguindo uma linha de dança clássica, mas funcionando como um celeiro para o nascimento de novos coreógrafos. É uma companhia que influenciou o Brasil inteiro. Produzindo ideias, novas estéticas. Que é também o que fez Oswald de Andrade quando lançou aqui o Manifesto Antropofágico. Eu tenho uma afinidade muito grande com isso. Até lá fora fiz no Teatro Alemão o Nelson Rodrigues, Beijo no Asfalto, Bachianas, de Villa-Lobos. Mas esta vocação da companhia de contemporaneidade hoje tem também a inclusão social. As pessoas têm que entrar e falar que esta casa é delas. Que os grupos da margem saiam da margem e entrem.
Isso causou alguma reação dos grupos tradicionais? Ou do próprio meio artístico?
Não. O balé da cidade nunca teve tanto público. Nunca teve tantos negros no público. Convidando esses grupos ditos marginalizados para adentrar o teatro, e se começa a criar um outro tipo de movimento dentro da própria cidade. Não significa que estamos subvertendo a casa. Por exemplo, em 20 de novembro do ano passado (Dia da Consciência Negra), eu coloquei a orquestra sinfônica do Municipal junto com três DJs do Capão Redondo fazendo um diálogo. Abarrotado. Alguns jovens da Galeria do Rock souberam que os DJs estariam aqui e vieram. Então você começa a fazer um encontro de culturas. Continua tendo uma La Traviata, mas também há espaço para este tipo de encontro. Temos um projeto interno que se chama Asas para Voar, onde eu fico encorajando os bailarinos que têm uma tendência a pesquisar para se tornar coreógrafos no futuro. Se a gente não plantar agora a semente, não vai ter.
Como você enxerga o Centro de São Paulo, as transformações que estão ocorrendo?
Ensaiando o espetáculo Risco, às vezes eu saía do teatro tarde da noite – eu moro aqui no Centro também, a três minutos da Biblioteca Mário de Andrade – e vi, aqui em frente, pelo menos 30, 50 pessoas, dormindo. É um fenômeno social e uma coisa que até agora nenhum prefeito conseguiu resolver. Decidi que o espetáculo ia começar assim e mandei comprar aqueles cobertores baratinhos na Rua 24 de Março. O Risco é um espetáculo que começa com um bailarino negro, com um cobertorzinho, entrando no teatro. Aí começa a abrir a cortina e ele a olhar aquilo. É um personagem que vem da rua. Tem gente que pensa que ele invadiu. Isso era Jean Michel Basquiat antes de ser famoso. E tem imagens de um drone passeando pela cidade, o Minhocão. Que sou eu, revendo a minha cidade, o Centro de São Paulo, onde eu caminhava sonhando que ia conseguir fazer alguma coisa da minha vida.
Em que época era isso?
Nos anos 1970. Eu digo para os meus bailarinos. No início aqui no Brasil eu dancei na rua. Na Rua 13 de Maio, que era a região boêmia da cidade na época, com todos os barzinhos. Ali eu dançava. Eu dancei pela noite. Tinha que ter um alvará. Eu tirava e dançava. Não podia pagar teatro. Eu dançava pelas ruas mais boêmias da cidade.
E hoje você quer juntar a rua e o teatro.
Não só juntar. Quando o então prefeito João Doria me chamou para anunciar a nova equipe do Municipal, eu disse: fui um adolescente negro, pobre, nascido na zona leste que um dia sonhou que através da dança era possível. Por isso hoje estou assumindo o balé do Theatro Municipal de São Paulo. E sei o que eu estou fazendo. Toda a minha relação com o Centro, com a cidade. São Paulo é o meu berço. E o meu berço de inspiração.
Hoje você mora na Bela Vista. Como é a sua rotina?
Venho e volto a pé. Fizemos um balé no ano passado inspirados numa exposição do Masp e os curadores vieram fazer palestras. Os bailarinos reviram sua própria vida. Alguns deles, que vem de classe média, sem nenhuma culpa de nada, perceberam que suas famílias eram escravocratas. Choraram, tiveram lembranças que eles não tinham conectado. E produzimos um belíssimo espetáculo, que eu levei para os teatros municipais da cidade. Não estou aqui só para posar de diretor do Balé da Cidade. O Sagração da Primavera (balé apresentado em abril pela companhia) tem todo um valor artístico, mas falo, por exemplo, de ecologia. Foi assim que fiz a minha carreira. E é assim que eu vejo essa oportunidade. Se estou neste teatro, no Centro de São Paulo, agora é a minha vez de imprimir minha marca, de deixar um legado de arte e engajamento. É isso o que prezo na minha gestão.
O cenário para a arte hoje está mais difícil do que há dois anos, não?
Sim. Ela é mais necessária. Tem um filósofo francês, Frantz Fanon, que era um filósofo negro, que dizia que é muito difícil começar uma revolução. Mas a partir do momento em que acende o estopim, é difícil de parar. Então vamos acender este estopim. É por aí que eu vejo o trabalho que eu tenho realizado.
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