A Vida no Centro

Publicado em:
Tempo de leitura:5 minutos

A cidade precisa estar pronta para os efeitos climáticos extremos, dizem pesquisadoras

Tatiana Tucunduva Cortese e Debora Sotto, do USP Cidades Globais, explicam por que é importante incluir a questão do clima nas políticas de regularização fundiária e demais projetos do poder público

Tatiana Tucunduva Cortese e Debora Sotto, pesquisadoras do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP, falam sobre os impactos dos efeitos climáticos extremos na cidade, entre outros assuntos

O que são cidades inteligentes e sustentáveis? Como conectar inovação, cidadania e sustentabilidade em ações que melhorem a vida nos grandes centros urbanos? Esses são os temas desta entrevista da série Hackeando a Cidade, com as pesquisadoras Tatiana Tucunduva Cortese e Debora Sotto, do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Tatiana é professora do Mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove, pós-doutora em Cidades Globais pela USP e autora dos livros Cidades Inteligentes e Sustentáveis e Mudanças Climáticas: do global ao local.

Debora Sotto é procuradora do Município de São Paulo, com atuação nas áreas de planejamento e desenvolvimento urbano, meio ambiente e habitação. Doutora em Direito Urbanístico pela PUC São Paulo, é pós-doutora pela USP, com pesquisas nas áreas de planejamento urbano, desenvolvimento sustentável e ação climática local.

NEWSLETTER

Assine nossa newsletter para ficar por dentro de tudo o que rola no centro

Ouça o podcast no Spotify:

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

O que é cidade inteligente e qual a relação desse conceito com a tecnologia

Tatiana Tucunduva Cortese Quando o conceito de cidades inteligentes surgiu, ele de fato começou pelas grandes empresas de tecnologia. Foi até um termo patenteado lá atrás pela IBM, junto com outras grandes empresas, para promover as tecnologias de informação e comunicação que poderiam ser utilizadas junto com prestação de serviços nas cidades. Mas depois se percebeu que cidade inteligente deveria ser algo muito mais amplo e trazer o conceito aplicado para uma cidade que é feita por pessoas e para pessoas.

Então a tecnologia é um meio, um instrumento para promover a inclusão, promover a inovação, uma cidade mais conectada, com uma prestação de serviços mais eficiente, mais abrangente, que permita que todos tenham melhor qualidade de vida. Sempre que se fala numa cidade inteligente, a gente obrigatoriamente relaciona com boa qualidade de vida, bem-estar e saúde e cidadãos conectados. A pandemia evidenciou a necessidade da tecnologia. Mas ela é só parte do que é uma cidade inteligente.

Debora Sotto – Quando falamos em cidade inteligente não é só tecnologia digital, mas inovação e política pública voltada à melhoria da qualidade de vida nas cidades.

São Paulo é uma cidade inteligente?

Tatiana – São Paulo foi eleita neste ano a cidade mais inteligente do Brasil no ranking do Connected Smart Cities. Mas como, se a cidade tem tantos problemas? Isso é baseado em indicadores e critérios. São 70 indicadores. O que destaca São Paulo é a mobilidade, pelo tamanho da malha de metrô e trem e a interligação entre transporte público. Mas todos nós que vivemos na cidade sabemos que o tamanho da rede não é tudo. Por isso os indicadores são importantes, mas não são suficientes.

Como reduzir a exclusão digital

Debora – Precisamos avançar sobretudo em conectividade. Provavelmente a maioria das pessoas desconhece, mas o direito à internet está consagrado por lei no Brasil como direito para todos. E faz tempo que isso deixou de ser luxo. Estar conectado à internet significa ter acesso a serviços públicos, ter acesso a oportunidade de emprego, educação. A pandemia demonstrou tudo isso. E na cidade de São Paulo uma parte pequena da população tem essa conectividade plena, acesso à internet de qualidade em casa ou pelo celular.

Por isso políticas de wi-fi livre são políticas públicas de fato. No início dos anos 2000, quando começou a se discutir a introdução do wi-fi livre, na época isso foi julgado como um desperdício de dinheiro público, como uma coisa que não era essencial. E hoje se verifica o quanto é  essencial propiciar o acesso à internet gratuita para a população de baixa renda e não só no espaço público, nas praças, mas também nos pontos de ônibus, nas escolas. Acho que um dos nossos grandes fracassos na pandemia foi a incapacidade do poder público de gerar soluções para que os alunos de escola pública pudessem continuar tendo acesso à educação por meio de formatos digitais por absoluta falta de conectividade. Existe um abismo, e ele pode crescer.

Assista à entrevista no YouTube

Impactos da pandemia nas cidades

Tatiana – Para nós, que trabalhamos com educação, tem sido preocupante. A gente quer um Brasil menos desigual, um país onde todos tenham acesso, e isso não pode ser um discurso tópico. Temos políticas públicas muito bem formuladas. Temos política nacional de educação ambiental desde 1995, estabelecendo que o meio ambiente deve estar em todos os níveis de ensino desde sempre. Temos política de recursos hídricos, política nacional de resíduos sólidos, política nacional de mudanças climáticas. Já temos todo esse arcabouço legal, que é muito bem feito. Então o que está faltando? Está faltando a gente aplicar. Está faltando ter eficácia.

Debora – No contexto pós-pandemia temos o agravamento das desigualdades sociais. Estamos observando na cidade de São Paulo um aumento brutal da população em situação de rua. Qualquer um que circule hoje, principalmente pelo centro de São Paulo, vai observar grandes contingentes de pessoas morando na rua, famílias inteiras que você vê que estão em situação assim imediatamente após despejo. E com isso vamos observar um aumento das ocupações nos imóveis vazios na região central e também nos assentamentos informais na periferia da cidade, o que representa um agravamento significativo de um problema que já estava instalado.

Ficamos por quase dois anos praticamente sem intervenção do poder público e deixamos de avançar muito em termos de regularização fundiária de imóveis informais. Ficaram congeladas as iniciativas de implementação de instrumentos indutores da função social da propriedade, para estimular a ocupação e a devida destinação dos imóveis vazios no centro.

Nesse cenário pós-pandemia vamos precisar retomar a implementação desses instrumentos de intervenção urbana com um quadro social muito agravado. Se avançamos anos-luz para a camada de privilegiados, com a tal transformação digital, quando a gente olha para a imensa maioria da população, que é despossuída, a gente retrocedeu décadas. Saiu agora uma pesquisa importante sobre segurança alimentar e a situação ali descrita é de retrocesso. A fome é algo que voltou a assombrar os lares brasileiros e, na cidade de São Paulo, isso, infelizmente, é uma realidade.

Riscos climáticos

Debora – Nós conseguimos, sobretudo a partir do Estatuto da Cidade, introduzir na pauta jurídica do país o direito à permanência da população que habita esses assentamentos informais, de se manter no lugar que elas estão ocupando. Porque elas construíram o capital social e humano naquelas localidades. Isso tem valor e precisa ser preservado na medida do que é possível. É claro que, se é um assentamento que está em área de risco, algum tipo de remoção vai ter de acontecer. Mas a recolocação dessas pessoas tem de ser feita num local geograficamente próximo, para que não haja essa perda de capital social e humano.

Os eventos climáticos extremos acrescentam uma complexidade grande nessa equação, porque na periferia estão as áreas menos apropriadas para ocupação humana e, portanto, sujeitas a riscos – e esses riscos aumentam com os eventos climáticos extremos. Riscos de inundação, de alagamento, de escorregamentos se verificam de maneira muito mais intensa nos assentamentos informais. O que a gente observa é que não estão sendo feitos estudos adequados de mapeamento dessas áreas de risco a partir desse prisma climático. Precisamos incluir o viés do clima nas políticas de regularização fundiária. O que pode acontecer de pior é fazer uma promessa para essas pessoas de que o direito de permanência delas vai ser garantido, colocar dinheiro público na regularização desses assentamentos, que é um dinheiro sempre escasso, e em alguns anos esses assentamentos se tornarem inabitáveis. Precisamos de fato trazer o viés do clima para a organização dessas ações habitacionais.

Isso não é levado em conta hoje em dia. Algumas cidades do mundo, como Nova Jersey, estão começando a elaborar mapas que identificam as áreas sujeitas, por exemplo, à elevação do nível do mar e alagamentos.

Aqui no Brasil ainda estamos engatinhando a respeito disso. É só olhar a simulação de elevação do nível do mar para a cidade do Rio de Janeiro. Veja quanto de dinheiro está se investindo na região do porto do Rio de Janeiro. Empreendimentos imobiliários milionários ali erguidos. Alguém está colocando na conta que aquele território vai estar debaixo d’água daqui a trinta anos?

Tatiana – O impacto é muito grande, é preocupante. Montamos ainda durante a pandemia um grupo de pesquisa sobre territórios e intempéries que é justamente para tratar desse tema. Começamos fazendo um levantamento de ocorrências de eventos climáticos extremos e como o município responde a isso de uma maneira direta. O que já identificamos é que o município ou o Estado muitas vezes investe nesses sistemas de detecção, de alarme para saber que um evento climático extremo vai acontecer. A tecnologia disponível para isso é muito avançada, porém não se investe em como responder depois da detecção. Dois dias antes a população é informada, mas não tem um treinamento para onde tem que ir ou o que fazer. Não existem protocolos de emergência formulados pelos municípios.

E temos não só os excessos, mas também a escassez hídrica. A cidade tem que estar pronta. Tem que treinar o cidadão também. O cidadão fica perdido.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

Leia outras entrevistas da série Hackeando a Cidade:

Giselle Beiguelman: a questão não é a privacidade, mas como os dados gerados na cidade são utilizados

Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez: a cultura híbrida vai expandir o conceito de cidade

Projeto de sociedade desejada deve vir antes do urbanismo, diz especialista o urbanismo social Jorge Melguizo

“Não devemos copiar Paris, mas definir nossa própria agenda”, diz Alejandro Echeverri, pai do urbanismo social

Carmen Silva, do MSTC: a moradia é a porta da entrada para os outros direitos

Habitação e mobilidade são os principais temas do pós-pandemia, diz Nabil Bonduki

Caio Vassão: Como as tecnologias regenerativas podem transformar as cidades

Janaína Rueda: o Copan é uma escola de cultura e diversidade

Como o skate ajuda a vivenciar a cidade