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Giselle Beiguelman - capitalismo e vigilância
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Giselle Beiguelman: a questão não é a privacidade, mas como os dados gerados na cidade são utilizados

A artista visual e pesquisadora Giselle Beiguelman fala sobre a importância e os cuidados com as imagens geradas no cotidiano

Giselle Beiguelman também fala nesta entrevista sobre as desigualdades aprofundadas na pandemia e a polêmica envolvendo monumentos que homenageiam figuras como bandeirantes, ditadores ou escravocratas.

Giselle Beiguelman - capitalismo e vigilância

Denize Bacoccina e Clayton Melo

A artista visual, curadora e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Giselle Beiguelman está preocupada com o uso que empresas e governos fazem dos dados que os próprios cidadãos, voluntariamente e sem pensar muito, produzem e entregam a cada vez que ligam seu celular, fazem uma foto, postam nas redes sociais ou simplesmente medem a temperatura ao entrar num shopping center com leitura de mapa de calor. Autora do livro Políticas da Imagem, Vigilância e Resistência na Dadosfera, Giselle diz que muitas vezes não sabemos exatamente o limite do uso dos dados que são coletados para um fim e podem acabar servindo a outro.

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“A grande questão hoje em dia não é mais a privacidade. A privacidade de certa forma acabou”, diz ela. “Mas o direito de saber quais dados seus são coletados, por quem e o que pode ser feito depois com esses dados é algo que os nossos sistemas legais ainda não abarcam. E é esse o grande embate”, afirma.

Nesta entrevista ao podcast Hackeando a Cidade, Giselle também fala sobre as desigualdades expostas e aprofundadas na pandemia e a polêmica envolvendo monumentos em locais públicos homenageando figuras como bandeirantes, ditadores ou escravocratas.

Ouça o podcast com Giselle Beiguelman

E leia abaixo os principais trechos da entrevista:

A imagem como campo de batalha

A imagem é um campo de batalha em todos os níveis, mas na cidade isso é muito evidente. Vai da assimetria de poder entre o cidadão e o poder público e as corporações que se manifestam, por exemplo, nas câmeras de reconhecimento facial. Elas lidam com uma série de imagens nossas que divulgamos nas redes, que cedemos aos poderes públicos quando, por exemplo, vamos fazer a emissão do nosso RG. Essa massa de dados é mobilizada nos procedimentos de reconhecimento facial. Essas e outras. É algo que o cidadão não tem consciência nem é advertido sobre o futuro uso desses dados. De modo que uma das primeiras batalhas se dá em relação aos nossos direitos sobre as nossas imagens. Não como posse individual, mas o direito de saber quando elas podem vir a ser usadas para outros fins que não aqueles aos quais destinamos e quem será o detentor desse poder de uso e o que pode ser feito com ele.

Outro campo de batalha no contexto da cidade está no campo político. Temos exemplos da direita à esquerda que ilustram essa situação. Por exemplo, em junho de 2013, quando as manifestações saem do eixo Centro-Paulista e se deslocam para a ponte Otávio Frias. Por que que eles fazem esse percurso? Porque essa é a imagem que faz fundo ao Jornal Nacional. É uma maneira de operar a contestação e reivindicar outra pauta que não aquela que corre no jornal se infiltrando na própria imagem. A partir da imagem é que essa batalha se constrói.

Ou se nós pensarmos no impeachment da Dilma, quando os deputados posavam durante os processos de votação com cartazes dizendo coisas como Tchau querida, Fica Dilma e construíam todo o seu debate para ser transmitido em fotogramas, na época no Twitter e hoje seria no Instagram. Nós vamos percebendo que a imagem é o grande campo de batalha por onde a vida social e política escorre hoje em dia e é a partir dela, no interior das imagens, que as principais disputas políticas e narrativas ocorrem e não a partir daquilo que a imagem ilustra.

Como as imagens que compartilhamos nas redes afeta a nossa sociedade

Acho que o principal ponto é entendermos que imagem digital é uma imagem relacional por excelência. Quando uma pessoa faz uma foto ou um vídeo, e cada vez mais isso é feito pelo celular, automaticamente ela registra o local em que ela estava, as coordenadas geográficas, pelo GPS, o momento em que a foto foi feita e quem estava no local. É muito comum as pessoas postarem fotos no Facebook e ele te perguntar, fazendo quadradinhos, se essa é tal pessoa, se você quer marcar ou já começa a taguear antes de você fazer qualquer movimento. Isso indica que esses dados já existem antes mesmo das imagens serem produzidas.

Então a vigilância hoje opera não a partir de um Big Brother que contempla todo mundo sem ser visto, no modelo panóptico, mas como uma espécie de “mini brother” que a partir do seu bolso vai monitorando o histórico dos seus movimentos. Precisamos entender que, quando falamos do celular, estamos falando das fotos que fazemos, dos trajetos que percorremos, dos usos que validamos nos Google Maps da vida, entre outros inúmeros recursos. Nesse sentido, a gente fala da vigilância que depende de um processo de compartilhamento que é feito por nós, mas tem usos que desconhecemos.

Assista à entrevista com Giselle Beiguelman no YouTube

Quando o nosso corpo se transforma em senha pela imagem, quando você atravessa uma câmera térmica para entrar num shopping center, num aeroporto e você é escaneado pelos seus mapas de calor, é óbvio que não é só a sua temperatura que é registrada ali. É o local em que você estava, quem estava atrás, na frente, as distâncias, quantas vezes você vai a esse local, quais os horários que você frequenta. E é a partir dessa bordas, dessas camadas das imagens que vários processos de vigilância não consensual vão ocorrer na nossa época.

A grande questão hoje em dia não é mais a privacidade. A privacidade de certa forma acabou. É impossível você estar em rede e compartilhando e querer ter a privacidade burguesa do início do século 20. Mas o direito de saber quais dados seus estão sendo coletados, por quem e o que pode ser feito depois com eles é algo que os nossos sistemas legais ainda não abarcam. E é esse o grande embate. O que está em jogo são os mapas informacionais contidos em cada uma dessas imagens e como elas podem ser relacionadas com outras.

O aumento da vigilância com a pandemia

O contexto pandêmico tem uma questão central. Nós queremos viver, queremos sobreviver a essa tragédia. Então, os dados que doamos são doados muitas vezes com a consciência de que desejamos contribuir para esse bem comum. O problema é que sabemos muito pouco sobre aquilo que é coletado. Quando tínhamos a quarentena no estado de São Paulo, isso era gerido com dados das empresas de telefonia celular, cruzando os GPSs das pessoas com um movimento do que acontecia de óbitos, número de internados, UTI. Alguém perguntou, alguém avisou o consumidor de que a partir de hoje os seus dados serão dados ao Estado? Você se negaria? Duvido. Porque é um momento em que você demanda essa vigilância. Mas o problema não é a coleta em si. O problema é o Estado e as operadoras dizerem que, terminado o uso, nada será feito com esses dados. Será? Num capitalismo de vigilância em que nós vivemos, será? Será que o Papai Noel existe mesmo? É meio difícil de acreditar que não haverá outros riscos. Quais usos? Pode ser um uso sensacional no pós-pandêmico, traçar essa ou aquela política pública, de transporte, de infraestrutura de hospitais. Mas ninguém nos perguntou. Essa opacidade é muito complicada.

A Covid não só maximizou uma coleta massiva de dados de pessoas que instalaram aplicativos, mas a opacidade da forma como isso é feita é muito complicada do ponto de vista de uma sociedade democrática, de respeito aos direitos. Isso já vinha acontecendo, mas a Covid não só acentuou como maximizou algumas questões. Nunca geramos tanto metadado sobre a nossa vinda como hoje em dia, pendurados no vídeo o dia inteiro.

O ativismo da janela e das projeções

Isso confirma, como eu sempre digo, uma hipótese aristotélica. O homem é um ser político. O seu lugar é a pólis, na rua, na cidade, e não atrás do monitor. A ocupação do espaço público e dos seus conflitos é constitutiva da experiência urbana. Ainda que você não possa sair às ruas. Esse ativismo das janelas que marcou profundamente a pandemia é um lugar por onde as insatisfações subiram literalmente pelas paredes. Como protestar contra as posturas do governo federal frente à gestão da pandemia sem recair na contradição de ir às ruas? Abrindo a janela e transformando a janela nesse lugar de estar não só canalizando as revoltas, mas negociando o espaço público. O processo de impeachment da Dilma foi marcado pelos panelaços. Eu digo que esses são janelaços, e não panelaços. Quem bateu panela naquela época bateu panela na janela por opção, porque poderia ter ido às ruas, poderia ter se manifestado de outras formas. No caso da pandemia, a única possibilidade de ocupar o espaço público era a janela. Sempre pensando que o espaço público não é um jardim murado onde todos se encontram num abraço. É um espaço onde há conflito, é um espaço de disputa. Ocupar esse espaço público era essa ocupação pela janela.

Como vê o futuro da rua e o carnaval de 2020

A reação da opinião pública (reação negativa ao anúncio de um megacarnaval em 2020) é o que corrobora minha hipótese. Por um lado ninguém aguenta mais. E a cidade não pode ser ocupada de maneira tão desigual como foi durante a pandemia. Os que podem trabalhar atrás das telas e os que não podem. Porque isso ficou muito claro. Tem toda uma população que não parou em nenhum momento.

Por um lado as pessoas querem tirar a máscara, porque ninguém aguenta mais. Por outro, o espaço público se tornou um lugar temível. Não pela subversão, como ele sempre foi, mas um lugar inseguro em que você não controla tudo que irá acontecer. Ele passa também a ser um lugar de contágio.

Acho que há uma sede de gente. Mas você nota também uma mudança de comportamento das pessoas que passam a recuar quando perto do outro. Nada de abraço, beijinhos. É como se a vulnerabilidade viesse à tona e tudo aquilo que a ficção construiu como a vida na metrópole, que é o homem na multidão, começa a ser reposicionado. Acho que esse período de dois anos em estado de confinamento, como nós passamos, não se desfaz de uma hora pra outra. Agora, a ver o que acontecerá no carnaval. A pandemia foi muito cruel para adolescentes, crianças, idosos – óbvio, esses não são os participantes do carnaval -, mas pra grupos que foram roubados daquilo que é mais essencial para eles afetivamente, a sociabilidade. A ver o que acontecerá.

Que tipo de transformações você acredita que possam ficar? Como a cidade será repensada ou redesenhada num futuro próximo?

O que mais a chama atenção é a desigualdade social. A Covid foi a explicitação de todas as nossas violências, de todas as contradições. Começando com quem pode ficar em casa, quem não pode, o lugar da mulher, que também ficou muito mais vulnerável à violência doméstica, sobrecarregada. Como administrar a escola dentro de casa, trabalho. Essas desigualdades ficaram muito claras.

O que ficou muito explícito é como um contingente enorme da população não tem amparo nenhum, nem da sociedade civil nem do Estado. Entendendo aí os agentes das cadeias produtivas como sociedade civil também. Nós não temos um mínimo de resguardo pra essas pessoas. A quantidade de pessoas em situação de rua hoje na cidade de São Paulo é algo que salta aos olhos, a quantidade de lugares fechados. Hoje o centro de São Paulo é uma cidade fantasma, com uma quantidade de pessoas em situação de rua. Sempre houve, sim, sempre foi cruel, mas ficou muito pior.
Então acho que essa cidade brutal, desigual, eu temo que ela se naturalize em algum momento. A consciência que a Covid nos trouxe de que não podemos abrir mão de serviços públicos essenciais.

Saúde pública é algo muito sério. E a outra coisa que ficou muito clara é como não temos políticas públicas de inclusão digital e que isso não quer dizer dar wi-fi livre para todos. É ter um letramento digital e a implantação de uma infraestrutura que permita a um aluno manter-se na escola diante da gravidade do momento pelo qual passamos.

Discussão sobre monumentos em locais públicos

Os monumentos são uma questão contemporânea no mundo todo. A cidade de São Paulo tem vários monumentos problemáticos, que agridem determinados grupos pela sua própria presença no espaço público. E não temos mais como relativizar isso, ou porque é uma obra do Brecheret ou do Júlio Guerra. A questão não é o mérito do artista, mas a percepção do quanto o patrimônio é uma instituição concentrada em poderes cristalizados e o quanto ele precisa ser rediscutido. E o quanto ele demanda maneiras de escutar, de saber filtrar as vozes da sociedade civil como um todo. Patrimônio está aí não pra ser deificado, mitificado, mas para ser tensionado, atualizado e há várias formas hoje que vêm sendo pensadas, como colocar em museus, para que não se crie uma história de apagamentos, mas uma história de questões.

Patrimônios que de fato tem que ser retirados de espaço público, tem que ser contestados a partir de outras infiltrações, aberturas. Tudo isso eu acho que é o grande saldo desses embates mais e menos violentos que vêm ocorrendo. Eles explicitam o quanto determinados grupos foram invisibilizados na história e, por outro lado, o quanto o espaço público é um espaço de negociação permanente, porque é um espaço de disputa e não um espaço de encontro e apagamento das diferenças. Ele não é isso.

E o direito à memória é constitutivo do direito ao espaço público. Se não tivermos direito de questionar as memórias, seremos privados também de questionar e ocupar o espaço público. Por isso essa discussão é tão importante hoje em dia.

Eu termino com uma frase que não é minha, é de uma colega, Flávia Brito. Ela sempre insiste que o patrimônio não está nos objetos, nas coisas, mas na relação dele com as pessoas. É aí que se cria a noção de patrimônio. Ela não vem sacralizada dentro de um monumento e involucrada de uma maneira impenetrável e inacessível. O patrimônio é fruto de uma relação, e essa relação tem que ser atualizada.

SOBRE A SÉRIE HACKEANDO A CIDADE
Com 15 episódios, a nova temporada do podcast do A Vida no Centro tem o propósito de provocar reflexões sobre o modelo de urbanização e compartilhar experiências bem-sucedidas de transformação de territórios.
O projeto conta com três apoiadores, que compartilham uma visão de cidade aberta, uso do espaço público e o amor pelo Centro de São Paulo: o escritório de arquitetura Pitá e o estúdio de design de móveis Estúdio Paulo Alves, que se mudaram para o Centro recentemente, e a construtora da Magik JC, empresa de 50 anos que produz habitação econômica com arquitetura e design no Centro de SP e gera impacto positivo por meio de suas ações.
O projeto conta ainda como a parceria da SP Escola de Teatro, responsável pela edição e finalização do podcast, e da plataforma de inovação aberta Distrito.

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