A Vida no Centro

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Como lido com o coronavírus

A médica Amália Pelcerman conta como a pandemia afetou sua rotina, mudou o ritmo de trabalho e acabou com a possibilidade de convivência social

Amália Pelcerman *

O vírus está no ar, não temos como eliminá-lo por enquanto, mas sim como enfrentá-lo. Isolados somos mais fortes, pensando em nós e nos outros. Medidas como higienização de objetos, lavagem das mãos, cuidados com o rosto são fundamentais. Orientações para não disseminar o pânico também, já enfrentamos outras epidemias.

Tenho uma vida frenética. Sou médica, começo cedo no consultório ou na faculdade, onde dou aula. Não almoço em casa e vou direto para o outro local de trabalho, de preferência a pé, não tenho carro. Nem chego a sentar e vou para minhas aulas de dança, às segundas e quartas à noite. Nas noites de terça, tenho palestras sobre temas médicos, outra atividade. Todos que me conhecem sabem que o último local que podem me encontrar é em casa. Promovo reuniões de turmas de colégio, de faculdade, do grupo de danças, pizzas filosóficas, adoro uma festa!

O coronavírus e a telemedicina

Porém, este vírus mudou minha rotina. Embora faça parte do grupo de risco por ter mais de 60 anos, continuo atendendo pacientes em consultório quando solicitada. Afinal as pessoas não sofrem somente de Covid 19 e precisam de orientações, tratamentos contínuos, avaliações para cirurgias e sobretudo atenção. Sou clínica e cardiologista.

Sempre fui contrária ao advento da telemedicina, atendimento por meio eletrônico que não tem contato físico com o paciente, mas sou forçada a reconhecer a importância desta ferramenta na atual pandemia. Tenho atendido por WhatsApp meus pacientes e ofereci meus préstimos a vizinhos e contatos para dar esclarecimentos sobre o coronavírus, tirar dúvidas e oferecer conforto aos muito ansiosos. Sou adepta da humanização da medicina e toda vida me pautei por esses princípios de tocar, ouvir, ver e sentir o paciente para elaborar um diagnóstico e dar o tratamento mais adequado. Mas a vida nos apronta surpresas e temos que aprender a lidar com elas, nos reinventar e prosseguir na luta.

Além do trabalho, dou assistência junto com minha irmã, que também é médica, a nosso pai que tem 93 anos e está isolado na casa dele. Ele mora sozinho, é lúcido e independente, mas nesse momento, impedido de sair (só sai para comprar um pão quentinha de manhã) aceita nossas visitas diárias, guardando a distância preconizada de 1 metro, quando levamos alimentos e medicamentos. Está sentindo falta dos nossos abraços, beijos e dos finais de semana em que, família reunida, saíamos para almoçar.

Confesso que no início da pandemia, quando só era epidemia, não acreditei que chegaria a este ponto. Era estudante na epidemia de meningite em 1974, trabalhei duro durante a epidemia de H1N1 em 2009 mas nunca foram tomadas medidas tão severas! A verdade é uma só: o confinamento é necessário para não ocasionar o colapso do sistema público de saúde, com muitos enfermos precisando de atendimento simultaneamente.

Vida mudou de ritmo

Minha vida mudou, o ritmo é lento, um dia após o outro. Vou ao mercado comprar frutas e verduras e faço meu próprio almoço, fato inédito. Descobri que tenho um pouco de talento culinário, mas não o suficiente para perpetuar esse hábito após o isolamento. Meu esporte favorito hoje é limpar a casa. Arrumo minhas pendências internas também, estou tendo tempo para isso. Já dançar não consigo. Para mim um ato coletivo e alegre, e como ando muito triste com os fatos não tenho motivação para ensaiar uma dança coletiva individualmente.

Ainda estou aturdida com todo esse cenário e por isso escrevo muito, faço a catarse cerebral através das palavras, derramo minha angústia no IPad e pronto, saio renovada.

As aulas na Unifesp, onde leciono, são transmitidas através de plataformas digitais. Tentaremos mantê-las para não descontinuar o ensino. Aproveito o momento atípico para ler e estudar.

Vejo a onda de solidariedade em vários setores e me surpreendo com esse movimento, torço que perdure. Há pessoas que me ligam com quem não converso há tempo. Foi preciso um vírus ameaçar a vida para tornar a nos falar, ponto positivo. Sinto que é um momento de transição do gênero humano, uma pausa para reflexão global, onde cada um exerce o seu papel no cuidado com o outro.

  • Amália Pelcerman é médica, mora em Santa Cecília e trabalha no Centro.

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