A Vida no Centro

O que te Assombra?

Thiago de Souza é advogado, compositor, roteirista e muito curioso. Inspirado na obra de Gilberto Freyre - Assombrações do Recife Velho, idealizou o projeto O que te Assombra?, que tirou das esquinas do sobrenatural assombrações históricas, maldições e tudo a que se esconde nos porões do centro de São Paulo. Essa coluna vai apresentar protagonistas destes casos, propondo um passeio por todas as dimensões que as histórias de assombrações merecem ser saboreadas.

As 13 almas do Joelma

O colunista Thiago de Souza fala sobre o incêndio do Edifício Joelma e das 13 almas que pereceram no local

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Uma emblemática construção nas imediações do Vale do Anhangabaú foi rebatizada e para respeitar as intenções desta mudança, nos referiremos a ela por seu antigo nome: Edifício Joelma.

O incêndio ocorrido nos domínios do Edifício é uma das maiores tragédias da cidade de São Paulo e há inúmeros olhares para o acontecimento.

Traremos alguns.

O primeiro deles é o do signo das maldições – o qual temos especial satisfação em combater.

Não é difícil encontrar argumentos de que o incêndio do antigo Joelma foi o desdobramento de uma antiga maldição – que começa em um pelourinho onde negras e negros escravizados eram torturados e mortos, passa pelo crime do poço e resulta na fatídica tragédia.

No entanto, não há registro de pelourinho no terreno do antigo Joelma, já que o Pelourinho da região central de São Paulo se situa no Largo Sete de Setembro, na Sé. Ainda assim, por que motivo se acredita que almas de negras e negros escravizados não conseguiriam sublimar seus martírios, ficando na terra amaldiçoando ambientes?

É muito evidente que esta ideia é completamente contaminada pelo racismo colonial, estrutural e, infelizmente, ainda endêmico no senso comum.

Se há um lugar amaldiçoado nessa história toda é o local de vida e/ou morte de quem causou tanta dor, exploração e sofrimento. Ou seja, de quem escravizou, torturou e matou.

Não há desonra ou maldição em locais onde o povo preto pereceu, tampouco em cemitérios indígenas, também constantemente estigmatizados.

Então é papo furado este argumento que a maldição do Joelma tem como origem as ações das almas de escravizados.

Também não é correto dizer que a origem da desgraça – pelo menos em dimensões espirituais – segue o curso do crime do poço.

O crime do poço é um assassinato triplo ocorrido próximo do Edifício Joelma, na década de 1940.

Próximo, mas não em seu terreno, como desavisados insistem em afirmar.

Para quem não conhece a trágica história, trata-se de um crime cometido por um professor de química que vivia uma paixão não aceita pela família.

Pelo que consta, a razão da rejeição é porque sua parceira já havia tido relacionamentos afetivos anteriores.

Sob o argumento de que precisava de água limpa, o professor construiu um poço no quintal da casa que vivia com suas irmãs e mãe.

Depois de matar suas parentes, jogou-as no poço e o fechou.

A polícia foi informada do sumiço das mulheres e, em uma diligência, encontrou os corpos no poço.

Descoberto, o professor tirou a própria vida no banheiro da casa, enquanto a residência era ocupada pelas forças de segurança.

Além das mortes que compuseram inicialmente o cenário, o bombeiro que retirou os corpos do poço morreu de septicemia dois dias depois de sua ação, contaminado com uma bactéria presente nos corpos.

O segundo olhar para a tragédia é mais concreto.

O Edifício Joelma foi construído sem qualquer proteção ou aparelhamento para enfrentamento de incêndio.

E não foi por falta sinais. No ano de sua inauguração, em 1972, houve outro importante evento trágico em São Paulo: o incêndio do Edifício Andraus – este localizado próximo à Praça da República.

O Incêndio do Andraus, que tirou a vida de 16 pessoas e feriu algumas centenas, só não causou mais vítimas porque o prédio possuia um heliponto, que foi utilizado para retirar as pessoas do  local durante o incêndio.

Voltando ao Joelma.

Como dito, o Joelma não estava preparado para incêndios. Com a comoção causada pelo elevado número de vítimas (que chegaram a 187 fatais e mais de 300 feridos), houve um clamor popular para que se implementassem regras de segurança em edifícios, as quais nos favorecem – quando cumpridas à risca – até hoje.

E nossa história sobrenatural começa deste ponto, pois os seus ou as suas protagonistas, em razão do desespero diante das chamas, cometeram um erro determinante. Tentaram fugir pelo elevador.

Em razão das chamas que tomavam, também, as escadas a partir do 12º andar (pavimento onde o incêndio começou), 13 pessoas arriscaram a sorte tentando descer pelo elevador.

Infelizmente não conseguiram.

A intensidade das chamas transformaram o elevador em um forno e pouco foi possível identificar das pessoas que ali estavam.

Só foi possível saber que havia 13 pessoas.

Estranhamente os corpos não foram reclamados por parentes e, em razão deste fato, os rituais fúnebres foram cumpridos em um terreno no cemitério da Vila Alina.

Construiu-se 13 jazigos perfilados.

O Jazigo das 13 almas do Joelma.

Todos os dias, em todos os cemitérios, se convive com dor, angústia e lamurio.

Mas um fato ocorrido na Necrópole da Zona Leste mostrou que as chamas e dores do ocorrido no Edifício Joelma estavam longe de serem apagadas.

Numa madrugada, enquanto o único vivo do local – um funcionário do cemitério –cumpria sua solitária rotina noturna, o silêncio foi rompido.

Vozes desesperadas se confundiam em um agonizante coro.

O coral macabro ia crescendo como uma onda oceânica de labaredas.

Mas, mesmo diante da unidade sonora, era possível identificar cada uma das vozes.

Eram 13 vozes.

Intuitivamente ele encheu um balde de água e despejou o líquido pelas 13 lápides.

Uma a uma, as vozes silenciavam, como em um abençoado batismo feito pelo rescaldo.

A história ganhou as esquinas e púlpitos.

E por terem saboreado o martírio das chamas do inferno, as 13 almas do Joelma foram santificadas pelo povo.

Sacralizadas pela dor infernal, ganharam culto e capela.

O altar da dor virou motivo de procissão.

Quem agradece as graças alcançadas retribui com copos de água, o líquido que lhes faltou no derradeiro momento de vida.

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