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No dia 4 de novembro de 2008, com muito atraso, uma taça de vinho numa mão e um baseado na outra, José Celso Martinez Corrêa adentrou o auditório 1 do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Em seu Arquivo Edgard Leuenroth, a universidade mantém acervo com farta documentação do Teatro Oficina – desde sua criação até o ano de 1986. A efeméride de cinco décadas do mais longevo e revolucionário coletivo do Brasil motivava aquele encontro com estudantes e professores.
Para o final do evento oficial, alguns alunos e um grupo de neodadaístas haviam preparado uma espécie de protesto performático. Queixosos da falta de um laboratório de estética no instituto, decidiram implementá-lo dentro de uma ala de banheiros. O ato deflagrador seria a lavagem dos sanitários, abençoada pelo ícone do teatro brasileiro e pelos batuques acelerados de gente inventiva.
Naquele cantinho da Unicamp, ao lado do supracitado, localizam-se também os institutos de estudos da linguagem e de artes, ou seja, território que colige intelectuais, artistas, militantes, hedonistas… Numa das escadarias, um grupo de poetas recitava versos de Florbela Espanca; duas garotas com sidecut e cabelos desconstruídos, como numa liturgia simbolista, distribuíam, aos que desejassem, alguns copinhos com chá de cogumelo; um artista circense local (bem conhecido em Barão Geraldo) rodeava tudo soltando fogo pela boca e fazendo malabarismo em cima de seu monociclo artesanal.
Destaque-se que muitos, a grande maioria, a bem da verdade, apenas observava – com pesadas mochilas entupidas de livros, pois é gente que estuda [tal qual os que caíram na gandaia] com paixão e seriedade; ao contrário do que pensa a caterva ultrarreacionária, essa gente preguiçosa que odeia a cultura e toma como modelo aquela conhecida família que tem conexão nevrálgica com milicianos e grupos de extermínio – aquele ritual a ser ensejado.
A lavagem dos sanitários, digo, do futuro laboratório de estética, seria realizada com todo mundo nu, convite aceito de imediato pelo Zé Celso (another day at the office). A limpeza seguiu tranquila e, um tempinho depois, núcleos de beijaços triplos e quádruplos começaram a se formar aqui e ali, cirandas de coreografias ousadas se espalharam pelo campus, protesto e diversão lado a lado, uma grande festa pacifista e libertária – para o desgosto de algumas classes que incluem apedeutas, brutamontes armados, políticos hipócritas com tesão por Golpe de Estado e também falsos profetas bilionários que não gostam de pagar imposto, mas estão sedentos por implementar uma teocracia em que o povo deve viver como na Idade Média enquanto a malta toma champanhe e cai na esbórnia, às escondidas, em Côte D’Azur.
Meu Dioniso, que falta faz o Zé Celso! E como é triste ver aquele famoso megalomaníaco de pensamento estreito brigar, há décadas, por migalhas, sem entender que um território simbólico vale – até mesmo em termos econômicos – muito mais do que um lote onde se quer erigir mais uma montanha anônima de ferro e concreto no Bixiga. Por sorte o teatro é, contudo, em espírito e estrutura, um fenômeno coletivo, de modo que o legado do Oficina e de seu corifeu está sendo perpetuado pela brava trupe que persevera.
Naquele dia, na Unicamp, rito político, celebração profana e ativismo estético emergiram daquela antiga fazenda que se transformaria em potência civilizatória. A universidade pública hoje, tal como o teatro, é um dos poucos espaços onde se preza pela racionalidade e pelo entendimento de que apenas [ou, principalmente] a educação pode levar ao bem-estar social e [real] desenvolvimento econômico. É desesperador ter que defender, em pleno século XXI, por causa de terraplanistas, cretinos antivacina e congêneres, estratégias tão óbvias. Saudosa tarde, aquela, de militância e curtição, quando a macumba antropofágica do Oficina se fundiu com a ousadia dos unicamponeses.
tt
@marcioaquiles
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