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No Dia das Mães, Edson Franco relembra a convivência com a sua: as lições que ela lhe ensinou e os anos de ausência
Faz tempo que não bato um papo mais demorado com a senhora. Mas nem pense em imaginar que eu me esqueci de tudo o que eu vivi e aprendi no curto tempo em que estivemos juntos. Pra te acalmar, informo que, todos os dias, passo na frente da sua foto na sala e me abasteço com o carinho e atenção que a senhora sempre me dedicou. Esse é o combustível para eu seguir em frente, certo de que nunca estou sozinho.
Minha nossa, como o tempo passa! Já faz 31 anos que não tenho mais o seu corpo para abraçar no Dia das Mães. Quando penso nisso, tenho a certeza de que a senhora continua me protegendo. Só os credores sabem o quanto foi difícil para uma costureira como a senhora – e um metalúrgico como o pai – criar e educar quatro filhos. Imagino o seu temor com a possibilidade de que seus rebentos sejam pobres, mas felizes, como a gente foi. Assim, tenho fé de que a senhora achou por bem reforçar o nosso caixa, nos desobrigando de comprar 31 presentes.
Quando penso na senhora, muita coisa me vem à cabeça. Algumas são bacanas, outras, nem tanto. Lembro-me da primeira vez que me fez chorar. Sempre fui pródigo em produzir lágrimas, e ninguém melhor do que a senhora sabe disso. Mas não tenho certeza de ter te contado o instante em que uma atitude sua inaugurou uma série de cortes no meu coração infantil. Pois então, prepare-se.
Acho que eu tinha uns três anos e não me recordo qual foi a “arte” que tinha aprontado. Em vez de me dar uma preferível surra de chinelo, a senhora começou a cantarolar uma música que pensei que havia composto naquela hora. “O maior golpe do mundo que tive na minha vida / Foi quando com x anos perdi minha mãe querida.” Aquela canção me destroçou. Foi a primeira vez que tive medo de te perder. Chorei de soluçar. Por piedade, a senhora parou de cantar, mas preservou aquela tortura em forma de música pelos anos seguintes, trocando o “x” por “quatro”, “cinco”, “seis”..
Mantive minhas “artes” no nível mínimo, pois morria de medo de motivar o início de mais uma cantoria macabra. Só quando eu tinha uns 9 anos, a idade correta da letra, descobri que o autor daquele martírio em forma de melodia era um gaúcho chamado Teixeirinha, mas o medo de viver sem a senhora já estava consolidado…
Ainda bem que a senhora reservava esse recurso extremo para penalizar travessuras mais irresponsáveis. Sei que a senhora sabia que não era coincidência quando sumia uma nota com a cara do Santos Dumont da sua carteira e, no dia seguinte, aparecia um novo time na minha coleção de jogos de botão. Sempre admirei a sua elegância quando fingia que não tinha notado o pequeno furto. Para outro tipo de delito, a senhora reservava uma bronca comedida. Era quando sumia uma lata de Leite Moça da despensa. Para não ter de ouvir a música do Teixeirinha, eu confessava o crime e me prontificava a ir pessoalmente ao bar do seu Miro comprar uma nova lata e repor o estoque.
Mãe, sabia que nem todas as vezes em que eu disse estar doente era verdade? E eu não simulava para poder passar o dia em casa. Sempre fui rueiro e a senhora sabe disso. É que eu gostava tanto do jeito que a senhora me tratava nessas ocasiões. A começar pelo uso ilimitado de diminutivos: “Tadinho, tá doentinho?”. Depois, me oferecia leite com mel e canela e arrematava me cobrindo até o pescoço. Em qualquer compilação que eu fizer dos momentos mais felizes da minha vida, há um espaço de destaque para esse nosso pequeno ritual.
A música sempre nos uniu. Entre os vários agradecimentos que devo, está um decorrente do dia em que a senhora encontrou o seu Antenor na fila do açougue. Ele era maestro da Banda Lira Mirim de Mauá, e a senhora perguntou pra ele a partir de que idade as crianças eram aceitas no grupo. Ao notar que eu me enquadrava, não demorou em me alistar. E eu passei a brincar com música, o maior amor da minha vida. Depois da senhora, claro.
Nesta época, lembro-me também de um momento em que fiquei meio puto. Conduzindo-me pela mão, a senhora me deixou na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Walt Disney. Entre um monte de gente desconhecida e regras diferentes das que a gente tinha em casa, pensei que nunca mais fosse te ver. Mas, quatro horas depois, reencontrei sua mão e, pendurado nela, voltei para a segurança da nossa pobreza feliz.
Sabia que uma das primeiras vezes em que troquei porrada com alguém foi por sua causa? Com certeza, a senhora se lembra do Vagner, filho da dona Vera, que morava na nossa rua. Um dia, no campinho, ele chegou e disse: “Para você nascer, o seu pai fodeu a sua mãe”. Não hesitei e pulei em cima do cara, usando alguns dos golpes que aprendera no judô (outra ideia sua, lembra?). Como ele se defendeu, voltei pra casa cheio de hematomas. A Doris, sua filha – e minha irmã – mais velha, me perguntou o que tinha acontecido. Ela ouviu o meu relato e, do alto da experiência de quem é oito anos mais velha que eu, explicou: “Edson, veja bem”.
Essa experiência me fez amadurecer uns belos seis anos. Aprendi ali como os humanos se reproduziam e como a minha mãe não era santa. Graças a Deus! Há uns cinco anos, na casa da tia Neide (que deve estar aí com a senhora), fui apresentado a um cara que te conheceu na adolescência. E fiquei feliz em saber que a senhora namorou um tal de Ronaldo e que o pai não foi o único homem da tua vida.
Lembro do dia em que vi uma demonstração explícita da sua libido. Depois do primeiro AVC que iria te afastar de mim pra sempre, houve a tua transferência para um quarto particular. Completamente sedada, a senhora xavecou o enfermeiro responsável por trocá-la de leito. Em vez de ficar contrariado, comemorei o fato de a dona Ruth ainda estar ali.
Reconheça, a senhora nunca gostou das minhas namoradas. Ainda bem que não foram muitas. Todavia, uma experiência me marcou, No dia em que me tornei noivo daquela que viria ser a minha primeira mulher, a senhora me deu um abraço gelado. Perspicaz como sempre, com aquele gesto a senhora estava me dando uma dica que eu só viria atestar 12 anos depois, quando me separei. Mas acho que a senhora deveria ter se esforçado. Um pouco de hipocrisia nessas horas sempre vai bem. Para deixar ainda mais clara a sua oposição a esse casamento, a senhora nos deixou três meses antes de ele se concretizar.
Não saem da minha memória as duas últimas vezes em que te vi. Na penúltima, ainda lúcida, a senhora me disse tchau e me acompanhou com o olhar até o fim do corredor do hospital. Passados 31 anos, tudo o que eu mais quero é voltar no tempo e no corredor e dizer um derradeiro “eu te amo” à senhora.
Na última, a senhora estava na UTI, em agosto de 1987. Com morte cerebral diagnosticada e o corpo gelado, troquei o nosso diálogo final. Um monólogo na verdade. Falei que a senhora podia ficar tranquila, pois o seu filho estava encaminhado. Maduro o suficiente para encarar o mundo sem a senhora.
Mentira! 31 anos depois, o seu abraço, o seu sorriso, o seu humor devastador, o seu carinho e a sua atenção são as coisas que sempre me guiaram e que mais me fazem falta. Nessa nossa conversa, me despedi com um “eu te amo”, mas acho que a senhora não ouviu. Se tivesse ouvido, não teria morrido meia hora depois.
Bom, mãe, vou ficando por aqui. Espero que a senhora esteja bem e divertindo todo mundo por aí. Aliás, não faço a menor ideia de onde seja aí. Saiba que eu tenho muita saudade da senhora e que sinto a tua presença todos os dias. Tenho me comportado relativamente bem e, acredito, não fiz nada ultimamente que motivasse a senhora a cantar a música do Teixeirinha.
Bença, mãe. Prometo não ficar tanto tempo sem um papo longo com a senhora.
Do seu filho,
Edson
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