A Vida no Centro

Franquezas

Edson Franco é jornalista com passagens por Folha de S.Paulo, revistas Galileu, Ele Ela, Guitar Player Brasil, IstoÉ, portal Terra e Canal Rural. Em quase todas essas publicações escreveu sobre música, fazendo críticas e entrevistando gente que vai de Wando a B.B. King. Músico diletante, toca guitarra nas horas vagas e discoteca em baladas de música brasileira dançante. É coautor do livro “Música Popular Brasileira Hoje” (Publifolha) e editor de “Zózimo Diariamente” (editora EP&A). Música é o centro da discussão aqui.

Bença, mãe!

No Dia das Mães, Edson Franco relembra a convivência com a sua: as lições que ela lhe ensinou e os anos de ausência

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Faz tempo que não bato um papo mais demorado com a senhora. Mas nem pense em imaginar que eu me esqueci de tudo o que eu vivi e aprendi no curto tempo em que estivemos juntos. Pra te acalmar, informo que, todos os dias, passo na frente da sua foto na sala e me abasteço com o carinho e atenção que a senhora sempre me dedicou. Esse é o combustível para eu seguir em frente, certo de que nunca estou sozinho.

Minha nossa, como o tempo passa! Já faz 31 anos que não tenho mais o seu corpo para abraçar no Dia das Mães. Quando penso nisso, tenho a certeza de que a senhora continua me protegendo. Só os credores sabem o quanto foi difícil para uma costureira como a senhora – e um metalúrgico como o pai – criar e educar quatro filhos. Imagino o seu temor com a possibilidade de que seus rebentos sejam pobres, mas felizes, como a gente foi. Assim, tenho fé de que a senhora achou por bem reforçar o nosso caixa, nos desobrigando de comprar 31 presentes.

Quando penso na senhora, muita coisa me vem à cabeça. Algumas são bacanas, outras, nem tanto. Lembro-me da primeira vez que me fez chorar. Sempre fui pródigo em produzir lágrimas, e ninguém melhor do que a senhora sabe disso. Mas não tenho certeza de ter te contado o instante em que uma atitude sua inaugurou uma série de cortes no meu coração infantil. Pois então, prepare-se.

Acho que eu tinha uns três anos e não me recordo qual foi a “arte” que tinha aprontado. Em vez de me dar uma preferível surra de chinelo, a senhora começou a cantarolar uma música que pensei que havia composto naquela hora. “O maior golpe do mundo que tive na minha vida / Foi quando com x anos perdi minha mãe querida.” Aquela canção me destroçou. Foi a primeira vez que tive medo de te perder. Chorei de soluçar. Por piedade, a senhora parou de cantar, mas preservou aquela tortura em forma de música pelos anos seguintes, trocando o “x” por “quatro”, “cinco”, “seis”..

Mantive minhas “artes” no nível mínimo, pois morria de medo de motivar o início de mais uma cantoria macabra. Só quando eu tinha uns 9 anos, a idade correta da letra, descobri que o autor daquele martírio em forma de melodia era um gaúcho chamado Teixeirinha, mas o medo de viver sem a senhora já estava consolidado…

Ainda bem que a senhora reservava esse recurso extremo para penalizar travessuras mais irresponsáveis. Sei que a senhora sabia que não era coincidência quando sumia uma nota com a cara do Santos Dumont da sua carteira e, no dia seguinte, aparecia um novo time na minha coleção de jogos de botão. Sempre admirei a sua elegância quando fingia que não tinha notado o pequeno furto. Para outro tipo de delito, a senhora reservava uma bronca comedida. Era quando sumia uma lata de Leite Moça da despensa. Para não ter de ouvir a música do Teixeirinha, eu confessava o crime e me prontificava a ir pessoalmente ao bar do seu Miro comprar uma nova lata e repor o estoque.

Mãe, sabia que nem todas as vezes em que eu disse estar doente era verdade? E eu não simulava para poder passar o dia em casa. Sempre fui rueiro e a senhora sabe disso. É que eu gostava tanto do jeito que a senhora me tratava nessas ocasiões. A começar pelo uso ilimitado de diminutivos: “Tadinho, tá doentinho?”. Depois, me oferecia leite com mel e canela e arrematava me cobrindo até o pescoço. Em qualquer compilação que eu fizer dos momentos mais felizes da minha vida, há um espaço de destaque para esse nosso pequeno ritual.

União na música

A música sempre nos uniu. Entre os vários agradecimentos que devo, está um decorrente do dia em que a senhora encontrou o seu Antenor na fila do açougue. Ele era maestro da Banda Lira Mirim de Mauá, e a senhora perguntou pra ele a partir de que idade as crianças eram aceitas no grupo. Ao notar que eu me enquadrava, não demorou em me alistar. E eu passei a brincar com música, o maior amor da minha vida. Depois da senhora, claro.

Nesta época, lembro-me também de um momento em que fiquei meio puto. Conduzindo-me pela mão, a senhora me deixou na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Walt Disney. Entre um monte de gente desconhecida e regras diferentes das que a gente tinha em casa, pensei que nunca mais fosse te ver. Mas, quatro horas depois, reencontrei sua mão e, pendurado nela, voltei para a segurança da nossa pobreza feliz.

Sabia que uma das primeiras vezes em que troquei porrada com alguém foi por sua causa? Com certeza, a senhora se lembra do Vagner, filho da dona Vera, que morava na nossa rua. Um dia, no campinho, ele chegou e disse: “Para você nascer, o seu pai fodeu a sua mãe”. Não hesitei e pulei em cima do cara, usando alguns dos golpes que aprendera no judô (outra ideia sua, lembra?). Como ele se defendeu, voltei pra casa cheio de hematomas. A Doris, sua filha – e minha irmã – mais velha, me perguntou o que tinha acontecido. Ela ouviu o meu relato e, do alto da experiência de quem é oito anos mais velha que eu, explicou: “Edson, veja bem”.

Essa experiência me fez amadurecer uns belos seis anos. Aprendi ali como os humanos se reproduziam e como a minha mãe não era santa. Graças a Deus! Há uns cinco anos, na casa da tia Neide (que deve estar aí com a senhora), fui apresentado a um cara que te conheceu na adolescência. E fiquei feliz em saber que a senhora namorou um tal de Ronaldo e que o pai não foi o único homem da tua vida.

 

31 anos sem poder abraçar dona Ruth

31 anos sem poder abraçar dona Ruth

Lembro do dia em que vi uma demonstração explícita da sua libido. Depois do primeiro AVC que iria te afastar de mim pra sempre, houve a tua transferência para um quarto particular. Completamente sedada, a senhora xavecou o enfermeiro responsável por trocá-la de leito. Em vez de ficar contrariado, comemorei o fato de a dona Ruth ainda estar ali.

Reconheça, a senhora nunca gostou das minhas namoradas. Ainda bem que não foram muitas. Todavia, uma experiência me marcou, No dia em que me tornei noivo daquela que viria ser a minha primeira mulher, a senhora me deu um abraço gelado. Perspicaz como sempre, com  aquele gesto a senhora estava me dando uma dica que eu só viria atestar 12 anos depois, quando me separei. Mas acho que a senhora deveria ter se esforçado. Um pouco de hipocrisia nessas horas sempre vai bem. Para deixar ainda mais clara a sua oposição a esse casamento, a senhora nos deixou três meses antes de ele se concretizar.

Não saem da minha memória as duas últimas vezes em que te vi. Na penúltima, ainda lúcida, a senhora me disse tchau e me acompanhou com o olhar até o fim do corredor do hospital. Passados 31 anos, tudo o que eu mais quero é voltar no tempo e no corredor e dizer um derradeiro “eu te amo” à senhora.

Na última, a senhora estava na UTI, em agosto de 1987. Com morte cerebral diagnosticada e o corpo gelado, troquei o nosso diálogo final. Um monólogo na verdade. Falei que a senhora podia ficar tranquila, pois o seu filho estava encaminhado. Maduro o suficiente para encarar o mundo sem a senhora.

Mentira! 31 anos depois, o seu abraço, o seu sorriso, o seu humor devastador, o seu carinho e a sua atenção são as coisas que sempre me guiaram e que mais me fazem falta. Nessa nossa conversa, me despedi com um “eu te amo”, mas acho que a senhora não ouviu. Se tivesse ouvido, não teria morrido meia hora depois.

Bom, mãe, vou ficando por aqui. Espero que a senhora esteja bem e divertindo todo mundo por aí. Aliás, não faço a menor ideia de onde seja aí. Saiba que eu tenho muita saudade da senhora e que sinto a tua presença todos os dias. Tenho me comportado relativamente bem e, acredito, não fiz nada ultimamente que motivasse a senhora a cantar a música do Teixeirinha.

Bença, mãe. Prometo não ficar tanto tempo sem um papo longo com a senhora.

Do seu filho,

Edson

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