A Vida no Centro

Ivam Cabral

Pantopolista paulistano

Ivam Cabral é múltiplo. Morador e apaixonado pelo centro da cidade, é ator, dramaturgo, cineasta, psicanalista e diretor da SP Escola de Teatro e da Cia. de Teatro Os Satyros. Publicou muitos livros, atuou em dezenas de países e recebeu prêmios no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos, em Cabo Verde, no Reino Unido e na Índia. Finalista ao Prêmio Jabuti em 2010, foi editado em Angola, Cuba, Finlândia, Portugal e Reino Unido; e teve textos seus traduzidos para o alemão, espanhol, inglês e sueco. A ideia desta coluna é falar sobre sociedade e cultura.

Sangrando

Ivam Cabral conta sobre um passeio com Cacilda, sua vira-lata mais linda do mundo, e um encontro na Praça Roosevelt

Publicado em:
Tempo de leitura:5 minutos

ivampsic@gmail.com

Aconteceu num domingo, uns anos atrás.

Eu e Cacilda, nossa vira-lata mais linda do mundo, estamos passeando pelo centro da cidade. Depois de uns giros pela feirinha da Praça da República e pelas avenidas Ipiranga e São João, chegamos à nossa Roosevelt.

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Estou sentado na borda de uma floreira em frente ao Espaço dos Satyros, enquanto Cacilda se diverte com uma poça d’água. Depois de algum tempo, aproxima-se uma senhora, uns 80 anos.

— Nossa, tive uma igualzinha!

— Verdade? Esta é a Cacilda.

— Que nome lindo! Cacilda era o nome de uma tia-avó minha. Meu Deus, nunca mais tinha me lembrado dela… Pra ver como o tempo passa…

— É, o tempo voa!

— E parece que foi ontem! Por falar no tempo, ainda hoje pela manhã eu estava me lembrando do meu casamento. Sabe há quanto tempo foi isso? Sessenta e dois anos, contadinhos.

— Verdade?

— Por Deus! Hoje faz 62 anos que me casei aqui na Igreja da Consolação.

— Dia especial, então. Parabéns! E a senhora sempre morou na Praça?

— Não. Morei a vida toda em Higienópolis. Faz menos de seis meses que cheguei aqui. Vim pra terminar meus dias aqui.

Não sei direito como continuar a conversa. Estou emocionado.

— Foi onde tudo começou. Fui muito apaixonada pelo meu marido, sabe? Meu melhor amigo e meu único homem.

— Que história bonita!

— Acho triste.

Silêncio. Começa a garoar. Ela continua:

— Porque acabou… Como tudo na vida.

Mais silêncio. Estou com vontade de chorar.

— Faz tempo que ele morreu?

— Sabe que faz? Mas parece que foi ontem. Morreu na Copa de 1970.

— Nossa, isso foi há mais de 40 anos!

— Mas vivemos 22 anos de pura felicidade.

Nesse momento começamos a ficar encharcados. A chuva aumenta.

— Eu vou morrer se não sair dessa chuva. Tenho bronquite crônica e na semana passada fiquei na cama durante cinco dias.

— Então vamos entrar, podemos sentar ali dentro — sugiro, apontando para as mesinhas do café do Satyros.

— Não, não. Eu tava precisando sentir a chuva. E está tão bom, não está? Eu gosto de chuva. Com este calor, então!

— Mas vai fazer mal para a senhora. É melhor entrarmos.

— Que nada, se eu morrer vai ser um descanso. Saí pra isso. Quando vi que tava armando temporal, resolvi sair sem sombrinha, sem guarda-chuva, sem nada. Queria mesmo me molhar.

— Não é melhor falarmos com alguém da sua família, algum de seus filhos?

Ela sorri um sorriso encabulado.

— Nasci com o útero seco.

Silêncio.

— Vou indo, então.

— Não quer que eu a acompanhe até sua casa?

Mais silêncio.

— Qual o nome dela mesmo?

— Cacilda.

— Que nome lindo! Cacilda era o nome de uma tia-avó minha — diz, enquanto vai descendo a rua.

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