A Vida no Centro

Denize Bacoccina

Blog da Denize Bacoccina

Denize Bacoccina é jornalista e especialista em Relações Internacionais. Foi repórter e editora de Economia e correspondente em Londres e Washington. Cofundadora do projeto A Vida no Centro, mora no Centro de São Paulo. Aqui é o espaço para discutir a cidade e como vivemos nela.

Mundo pós-pandemia: estamos criando uma sociedade mais solidária?

Solidariedade em tempos de coronavírus pode ser uma resposta das empresas à cobrança da sociedade. Será uma transformação no capitalismo?

Reflexões sobre a solidariedade em tempos de coronavírus e as atitudes que a sociedade espera das empresas.

Por Denize Bacoccina

Quando o isolamento social foi decretado em São Paulo, há quase um mês, minha primeira impressão – medo, na verdade – era que uma grande onda de egoísmo estava se formando, levando a uma divisão ainda maior da sociedade. Eu temia, nesse primeiro momento, que a falta de apoio do governo para os mais necessitados, especialmente os que não tem onde morar, criasse um cenário estilo Ensaio Sobre a Cegueira, dividindo o mundo entre os que podiam ficar em casa e outros vagando pela rua, ainda mais desassistidos.

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Felizmente, eu estava errada. Esta sensação foi diminuindo à medida em que o medo do outro foi dando lugar a um grande movimento de solidariedade. Uma solidariedade ampla, abrangente, que vai dos pequenos gestos, de ajudar o vizinho idoso, costurar máscaras, arrecadar doações e distribuir garrafas com água e sabão pelas ruas à cobrança de uma nova postura por parte das empresas.

E é esta a grande transformação que estamos vivendo. Uma maior cobrança da responsabilidade social das empresas já era uma tendência que vinha aparecendo nos cenários dos futuristas e estudiosos do assunto mas, como muitas coisas, ela foi acelerada por este evento extremo. A exigência, por parte dos cidadãos, consumidores, para que quem está do lado mais forte do capitalismo faça algo além de zelar pelo seu lucro. A responsabilidade social do capitalismo já estava em questão antes. No livro De Dentro Para Fora – Como uma geração de ativista está injetando propósito nos negócios e reinventando o capitalismo, de 2015, Alexandre Teixeira mostra que as reformas nos negócios já estão em marcha. “Movimentos como o dos negócios sociais e o Capitalismo Consciente, organizações horizontais e Empresas B estão utilizando as ferramentas da livre-iniciativa para injetar propósito nas atividades produtivas e elevar o impacto socioambiental positivo das empresas”, afirma.

Estamos diante de um novo capitalismo?

Neste novo cenário, o lucro pelo lucro já não é mais legítimo, e o próprio caminho do capitalismo já é questionado. Um questionamento que já havia começado antes, como indica a campanha lançada em setembro pelo jornal britânico Financial Times pedindo um “reset do capitalismo”, afirmando que na última década o modelo capitalista de maximizar os lucros e o valor dos acionistas já não são suficientes no mundo dos negócios.

Terá esta pandemia a força necessária para provocar uma mudança tão profunda na sociedade e na forma como nos vemos nela a ponto de transformar o capitalismo? Ainda não sabemos. Mas é certo que alguns sinais já podem ser vistos. E uma demanda da sociedade por solidariedade por parte das empresas é certamente uma das mudanças em curso.

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Uma pesquisa da Kantar, Covid-19 Barometer, feita com 25 mil consumidores em 30 países, mostra bem isso. 77% dos ouvidos esperam que as empresas digam o que estão fazendo de útil neste momento. No Brasil, a proporção é ainda maior, de 87%. E para 80% dos brasileiros ouvidos, seria um erro explorar a crise para promover e marca e 78% dizem dar preferência a marcas que estão cuidando da saúde de seus colaboradores.

Solidariedade em tempos de coronavírus

Isso nos faz pensar que teremos um mundo diferente quando as cidades forem reabertas, as empresas voltarem a atuar e todo mundo voltar ao trabalho. Não digo voltar ao normal, porque o próprio conceito de normalidade está em revisão.

Como disse Drauzio Varela, em entrevista ao Uol, “esquece a vida normal, ela não vai existir por muito tempo”. Visão corroborada pelo biólogo Atila Iamarino. “O mundo mudou, e aquele mundo não existe mais. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que tenta manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa nova realidade”, afirmou.

E qual é esta nova realidade? Afinal, que sociedade estamos construindo, para quem, quais são os nossos valores, o que queremos deixar como legado em nossa passagem pela Terra?

Primeiro veio o egoísmo

Empresários que foram pelo caminho do egoísmo, como Luciano Hang, da Havan, e Junior Dursk, da rede de hamburguerias Madero, defendendo a reabertura da economia para evitar prejuízos e tratando a perda de vidas como natural e inevitável, tiveram como resposta um forte rechaço social. A principal reação dos consumidores foi declarar boicote às lojas. Se vão se fato fazer isso quando puderem voltar a frequentar esses estabelecimentos ainda não sabemos, mas a intenção já foi declarada e a imagem das empresas, bastante arranhada.

E enquanto o publicitário Roberto Justus foi execrado ao minimizar a morte de 5 ou 6 mil pessoas como um preço justo a ser pago para reabrir a economia, o colega Washington Olivetto, criador de campanhas publicitárias que fizeram história na publicidade brasileira, defendeu a solidariedade como forma de atuação das empresas neste momento. “É hora de informar o cliente, e não de persuadi-lo a comprar, de tentar vender alguma coisa”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo. Várias empresas já seguiram essa recomendação: trocaram suas campanhas de produtos por mensagens para que o consumidor fique em casa, agradecimentos aos que trabalham em serviços essenciais e anunciaram doações de produtos e mercadorias e adaptaram suas linhas de produção para suprir produtos em falta no mercado.

“Precisamos entender que fazemos parte de um grande ecossistema”, diz o empresário Daniel Castanho, presidente do conselho e um dos fundadores do grupo Ânima Educação, criador do movimento Não Demita!, um pacto de não demissão até o dia 30 de maio. O movimento começou com 41 empresas, e qualquer empresa pode assumir o compromisso . “Os empresários, as empresas, as pessoas, os líderes, os governantes que não tiverem uma visão holística não existirão no mundo pós-coronavírus”, diz ele.

Protegendo o ecossistema, protegendo a sociedade

Iniciativas para proteger o ecossistema apareceram em vários segmentos. E este ecossistema por ser entendido como os funcionários e suas famílias ou seus clientes e fornecedores. O que se exige das grandes empresas, neste momento, é solidariedade. E quem faz isso é bem recebido, mas não com aquele entusiasmo de quem faz um favor, e sim como um sentimento de que cumpriu sua obrigação. Foi essa a receptividade ao anúncio do Itaú da criação de um fundo de R$ 1 bilhão para combater a epidemia. Trata-se de muito dinheiro, sem dúvida, a maior doação já feita no Brasil, e a reação de muitos, nas redes sociais, foi na linha de que a empresa estava apenas devolvendo uma parte do que lucrou ou deixou de pagar em benefícios tributários nos últimos anos.

Por outro lado, a Rede Globo, que sempre se recusou a mencionar o nome de empresas em suas reportagens, mudou sua postura e passou a mostrar as iniciativas das empresas que estão ajudando no combate à epidemia com doações, numa editoria batizada de Solidariedade S/A.

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Outro exemplo para ilustrar esta mudança de postura da sociedade. Nos últimos anos houve uma grande discussão sobre o destino de um terreno do empresário Silvio Santos no Bixiga. Ele deveria ter o direito de construir ali um condomínio e um shopping center ou o terreno deveria ser destinado a um parque? Quando escrevemos sobre o assunto, foram muitos os comentários de leitores dizendo que a propriedade era dele e ele deveria usar como quisesse, não tinha obrigação de pensar no bem público. Será que a reação seria a mesma hoje? Não dá para ter certeza, mas eu apostaria que não. Acho que hoje muito mais gente diria que, com tanto dinheiro, ele poderia contribuir oferecendo um parque à cidade.

A proteção do ecossistema – que, em alguns casos, significa ajudar o concorrente de menor porte – também está por trás da iniciativa do Magazine Luiza, que abriu sua plataforma de e-commerce e criou um marketplace para ajudar pequenos lojistas a desovar seus estoques e manter a operação funcionando mesmo com as lojas fechadas. Luiza Trajano, ao contrário do dono da Havan, sempre destaca em suas entrevistas a importância de apoiar os funcionários para que eles consigam sobreviver a este momento.

A Ambev, empresa conhecida no mercado pela agressividade com que bloqueia a presença de concorrentes nos pontos de venda, lançou a campanha Ajude um Buteco para apoiar bares, com sua marca Bohemia, e restaurantes, Apoie um Restaurante, com a marca Stella Artois, em parceria com a Nestlé. Na mesma linha, a concorrente Heineken lançou o Brinde do Bem.

Não fazem isso por bondade, mas por perceber a importância da proteção de todo o mercado, se querem voltar à normalidade após o fim da pandemia.

E não são apenas as grandes marcas que estão sendo cobradas. Mesmo pequenas empresas são chamadas a ajudar quem mais precisa. Um pequeno exemplo: semana passada, num grupo de WhatsApp, o dono de restaurante compartilhou um filme mostrando a excelência de seu produto, que mesmo no delivery chegava perfeito ao consumidor. Foi cobrado por outro integrante: em vez de propagandear o seu produto, deveria informar o que está fazendo para ajudar os que não têm o que comer. Por outro lado, restaurantes que anunciam seus esforços de delivery em grupos de Facebook de vizinhança são muito bem recebidos, como quem está engajado nos esforços de manter seus funcionários e atender a quem precisa. É tudo uma questão de postura: é ok fazer negócio, mas é preciso fazer negócio com propósito.

Todos no mesmo barco e o futuro do capitalismo

Uma pandemia como essa, para a qual não se tem proteção garantida, traz uma sensação de que ninguém está a salvo. A compreensão de que todos estamos no mesmo barco – se não no mesmo barco, pelo menos na mesma tempestade, com ondas fortes o suficiente para virar também barcos grandes e luxuosos – parece estar finalmente despertando a consciência de que este capitalismo que concentra renda e só beneficia alguns não pode continuar.

Como escreveu Sabina Deweik no artigo Covid-19: um reset rumo à abundância, publicado no site O Futuro das Coisas, a prioridades já estão sendo revisitadas. Como no filme O Poço, sucesso na plataforma de streaming Netflix, em que os que estão nos andares mais altos comem além do precisam e nada sobra para os andares mais baixos, ela argumenta que o capitalismo nos faz pensar que existe escassez e que precisamos acumular para que não nos falte o necessário. O que não é verdade, diz. “Meu apelo é que estejamos abertos e receptivos a ideias que criem abundância e prosperidade, para si, para o outro e para o mundo”, diz Sabina.

Essa mudança de mindset, de escassez para a abundância, a não acumulação, já vem sendo manifestada de outras maneiras, e deve ser a grande tendência do mundo pós-pandemia. Não se trata da pregação de igualdade no estilo socialista/comunista do século 20. O combate à desigualdade, desta vez, vem com um apelo de desapego dos que têm mais.

“Quero mudar radicalmente a minha vida quando tudo voltar ao normal”, escreveu o publicitário Nizan Guanaes, que teve coronavírus, num artigo publicado logo que ficou curado, dizendo ainda que apesar do alívio sente medo pelo filho que vive em Nova York e está perdendo amigos para a doença.  “Depois que fiquei doente, decidi mudar o padrão de consumo. Vou doar ou descartar metade das minhas coisas. Quero comprar saúde, conhecimento.”

Não é um movimento que começou agora. Eu mesma conheço muita gente que já fez ou vem fazendo isso: se livrando de coisas para simplificar a vida e focar no que as faz mais feliz. Mas é esta a grande transformação provocada pela pandemia, ela vai funcionar como um grande acelerador de futuros, trazendo para mais perto tendências de comportamento que era visíveis, mas poderiam demorar um pouco até se concretizar.

E a desigualdade?

Em janeiro, um relatório da organização Oxfam sobre desigualdade divulgado em janeiro mostrou que os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial.

Neste cenário, o Brasil não está nada bem. Em 79ª posição no ranking de desenvolvimento humano (IDH), de um total de 188 países, o Brasil é sétimo quando se mede a desigualdade. Em resposta ao relatório obsceno da Oxfam, um grupo de milionários, liderados pelos herdeiros da Disney, Abigail e Tim, lançou o Patriotic Millionaires com uma carta aberta assinada por 120 milionários e bilionários de 8 países endereçada aos seus pares de todo o mundo, pregando uma reforma tributária que impeça a movimentação de recursos dos bilionários para paraísos fiscais. Naquele momento, ainda não havia uma pandemia, a preocupação era com a “catástrofe climática iminente”, como citam na carta. “Isso será desastroso para todos, inclusive milionários e bilionários”, afirmam.

No Brasil, o debate sobre taxação de grandes fortunas, ausente nos últimos anos, voltou à discussão nas últimas semanas, como uma das alternativas para cobrir os gastos com a pandemia. E nesta segunda-feira de manhã, dia 13 de abril, a #TaxarFortunas liderava o Trending Topics do Twitter.

Quem diria.

É esta percepção – ou a sua compreensão – de que não tem sentido ser uma ilha de prosperidade num oceano de miséria, que a pandemia causada por um vírus invisível nos traz. Não adianta ficar encastelado numa mansão se quem limpa a sua casa e faz a sua comida tem que viajar de ônibus todos os dias, expondo-se e expondo a sua família ao vírus.

Será o início de uma grande mudança? Depende de cada um. Mas o processo já começou.

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