Quando o chão vira texto
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Com a mesma velocidade que aparecem, elas somem e deixam um rastro de saudades e dejetos atrás de si
Minha relação com o lixo teve um início, digamos, estético. Nossa casa em Mauá, na Grande São Paulo, era cercada de terrenos vazios, nos quais os vizinhos atiravam toda sorte de objetos considerados inúteis. Eu e meus amiguinhos nos divertíamos entre sofás esburacados, cadeiras com três pernas, corpos esquartejados de bonecas e madeiras, muitas vezes com pregos espetados nelas.
Claro que perfurávamos nossos pés várias vezes nesse tipo de entulho, mas ele tinha uma função até didática: nossas mães não precisaram perder tempo explicando a importância da vacina antitetânica. Claro que o prazer estético não decorria desse acumulado de tranqueiras. Ele vinha das frequentes fogueiras, que clareava nossas noites, ainda iluminadas por pálidas lâmpadas incandescentes.
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Na época, eu também era fã ardoroso do desenho animado do gato Manda-Chuva. Como meu herói vivia em um latão de lixo, isso ajudou a afastar de mim a repugnância que a convivência com dejetos gera na maioria das pessoas.
Deixei de associar lixo com diversão em 1974, aos 11 anos. Eu e meus colegas da Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Walt Disney fomos levados para conhecer o recém-inaugurado Metrô de São Paulo. Andamos nos trens, visitamos a central de controle, ganhamos lanche com refrigerante de marca. Mas nada teve mais impacto em mim do que a limpeza do lugar, uma coisa quase inédita para os meus olhos suburbanos de menino.
A frase que mudou minha vida
Comentei a minha surpresa com a dona Yeda, que era servente na escola e tinha uma paciência infinita para nos explicar as coisas do mundo. Ela apontou para as latas de lixo e para o chão, que ainda cheirava a borracha nova, e disse: “Com tanto lugar para jogar as coisas, as pessoas têm vergonha de ser a primeira a fazer sujeira”.
A frase da dona Yeda mudou a minha vida para sempre. Passei a ter asco de quem joga papel no chão, dos playboys que atiram latinhas de cerveja pela janela do carro, das madames que deixam sacos de lixo abertos na calçada e, numa ruptura brusca com o passado, de gente que despeja dejetos em terrenos baldios.
Desse dia em diante, sempre que tinha algo descartável nas mãos, perambulava pelas ruas feito o personagem da série “Kung Fu”, em busca de local apropriado para despejá-lo. Muitas vezes não encontrava, o que me obrigava a carregar o detrito para casa, trabalho ou escola.
Já morando em São Paulo, sempre comemorei quando os prefeitos anunciavam planos de espalhar lixeiras pela cidade. Fiquei especialmente feliz quando Fernando Haddad instalou 150 mil delas. Em algumas regiões, era quase impossível andar 100 metros sem deparar com aquelas lixeiras de plástico verde e duro. A festa não durou muito. Por vandalismo ou furto, elas foram desaparecendo, deixando apenas o anel de metal que as prendia aos postes.
Veio João Doria e o seu slogan Cidade Linda. Começaram a pipocar pela cidade algumas lixeiras igualmente verdes, porém de metal. Apesar de em menor número, elas prometiam vida mais longa. Mas muitas sumiram praticamente no mesmo tempo em que o homem permaneceu na cadeira de prefeito. Passeio diariamente com a Clementina, a minha cachorrinha, num raio de dez quadras em várias direções. Havia cinco dessas lixeiras no nosso caminho. Hoje só uma sobrevive.
Deixo aqui a ideia para que algum desses gênios da tecnologia desenvolva um aplicativo que mostre onde se localizam as lixeiras ativas na cidade. Eu seria o primeiro a baixar. Isso evitaria com que eu ande por vários quarteirões à deriva, carregando o saquinho com o cocô da Clementina e me sentindo a bolsa de colostomia da minha cachorra.
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