A Vida no Centro

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O futuro dos lugares em uma perspectiva de incertezas

Caio Esteves escreve sobre o impacto do coronavírus na nossa vida urbana e o futuro dos lugares com a transformação do espaço público

A mudança geral que se abateu sobre o mundo com a pandemia de coronavírus afeta em cheio a vida urbana. Qual é o futuro dos lugares neste momento de incerteza? É este o tema do artigo de Caio Esteves, especialista em place branding e pioneiro na abordagem de marcas-lugar no Brasil, entendido como algo além das identidades visuais ou campanhas de marketing, mas como fortalecimento dos lugares através da identificação das vocações e participação popular. Leia o artigo exclusivo para o A Vida no Centro:

Caio Esteves

A terra parou.

Não por conta de uma invasão alienígena como na novela radiofônica de Orson Wells, mas por conta de um vírus. Invisível, mas certamente terráqueo.

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Como morador de um grande centro urbano como São Paulo me vi dentro de um filme distópico, um Ensaio sobre a Cegueira da vida real. Ainda que com os serviços básicos funcionando e a ausência de montanhas de lixo nas ruas, não ver ninguém, absolutamente ninguém da minha janela, onde, por uma nesga, se enxerga a tumultuada Praça da República, é no mínimo assustador. Nem 1º de janeiro a rua fica assim, e olha que 1º de janeiro não tem ninguém em lado nenhum.

Com a minha trajetória profissional entrelaçada com a cidade, esses tempos foram a oportunidade forçada de reflexão. Afinal, depois desse evento traumático, bem ao estilo Cisne Negro, como reagirão as pessoas em relação aos espaços públicos e como será a relação delas com a cidade?

O que percebo é que, por algumas semanas ao menos, o mundo todo, sim o mundo todo, se transformou em um não-lugar. Para os não iniciados na geografia humanista, não-lugar é um conceito de Marc Augé, ou seja, um lugar sem características simbólicas o suficiente para ser um lugar e ao mesmo tempo com uso e algum nível de relação emocional a ponto de não se caracterizar um espaço. Pra explicar esses extremos evoco outro autor, Tuan, que define que os lugares são espaços dotados de significado pelas pessoas.

Ou seja, passamos a ver uma paisagem, um cenário vazio, sem vida, ainda que belo. Viu-se, pela TV, a água de Veneza, a entrada do Duomo de Milão, dava até para ver a Sagrada Família em Barcelona sem a horda de turistas que impedem a sua visão 365 dias do ano.
Mas a relação das pessoas com o lugar vai muito além do hardware, ou dos edifícios. Ela certamente é baseada em outros dois elementos, muitas vezes esquecidos: software e peopleware. Não tem a menor graça uma cidade, um lugar, sem as atividades que acontecem lá (software) e principalmente sem a cultura, sem as pessoas (peopleware).

Os lugares, strictu sensu, se limitaram às nossas casas. Público e privado se fundiram, na melhor das hipóteses. Na grande maioria dos casos, o público simplesmente desapareceu.

Nesse ponto que estamos diante de um possível paradoxo (diante de vários na verdade, mas aqui me limitarei a esse único). A vida coletiva em oposição ao isolamento individual. Num texto recente do Harari (aquele do Sapiens) ele disse que vivemos uma encruzilhada entre duas visões de mundo: a isolacionista nacionalista e a solidariedade global.

Trazendo pra discussão urbana, estamos diante de um ponto de inflexão que o mundo levou séculos para retomar. A volta da ideia de que a cidade não é mais um mal, como se pensava na revolução industrial, em grande parte causadora do espraiamento urbano e dos subúrbios como alternativa saudável a vida, agora questionada pelo isolamento necessário diante da pandemia.

Ninguém tem a resposta.

Nos resta esperar o fim desse período de recolhimento e entender qual visão de mundo sairá vencedora.

Torço para que tudo volte ao que era antes, meses antes e não séculos.

Caio Esteves é fundador da Places for Us, primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil. Autor do livro “Place Branding”, publicado em 2016, é colaborador e jurado do City Nation Place, congresso internacional de Place Branding em Londres, membro do Institute of Place Management de Manchester-UK, membro do Research Panel do The Place Brand Observer, associado a IPBA- International Place Branding Associaton e revisor convidado do Place Branding & Public Diplomacy. É professor na pós-graduação das disciplinas de branding e place branding no IED-SP, Rio Branco-SP, SENAC-SP, ANPROTEC-RJ e Alfa- GO, e na graduação do IED-SP.

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